Carioca, o filme/2



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Roteiro com mais personagens para o documentário

9. Os botequineiros. Abrir esta parte do filme sobre os cariocas com um cotovelo apoiado, seguido do movimento do braço que derrama ao pé do balcão a primeira dose da cachaça para o santo. Os botequins são uma das catedrais da carioquice e ali fala-se com o Além e com os amigos. Filmar uma roda de samba no Bip Bip em Copacabana, entrevistar o boêmio Teófilo Ottoni comendo uns croquetes de vatapá no Chico e Alaíde, e pedir ao Jaguar, cercado de copos de steinhaeger por todos os lados, que conte mais uma vez a história do coelho. O dono de um bar, nos anos 1960, em Ipanema, fazia circular, de sacanagem, um coelho entre as mesas. Queria que os bêbados achassem estar prestes a um delirium tremens. O truque costumava dar certo. Os pés de cana percebiam ter ido longe demais, pediam a conta — e o português podia fechar as portas.
10. Os suburbanos. Encher um ônibus da linha 355 (Tiradentes-Madureira) com moradores ou ex-moradores famosos do subúrbio, gente como Tia Surica, Fernando e Barbara Molica, Rodrigo Fonseca, Pinah, Romário, Caetano Veloso, Luiza Brunet e Sergio “Pai” Cabral. O motorista, o compositor Nei Lopes, que está lançando uma enciclopédia sobre o subúrbio, deve se dirigir a todos olhando pelo espelho e pedindo, reiteradas vezes, “aí, pessoal,vamos dar um passinho à frente, por favor”.  Depois do terceiro pedido sem que ninguém tenha se mexido, o motorista dará uma freada curta para “arrumar” a turma e deixar espaço para novos passageiros entrarem. Mostrar pela janela do ônibus os postais suburbanos: o largo do Bicão, o parque Ary Barroso, o coreto do Méier, o terreiro do seu Sete da Lira, o fantasma de Zaquia Jorge no cemitério de Irajá, o hospício de Lima Barreto, a casa da Fera da Penha e o campinho de pelada onde Romário deu seu primeiro bico.
11. Os inventores da raça. Eles criaram a mitologia do carioca, um tipo que é vendido no imaginário nacional como aquele que rompe com os padrões de comportamento e tem como objetivo na vida o correto equilíbrio entre as obrigações e o salve o prazer. Perguntar nas ruas ao povão “Se Cabral inventou o Brasil, quem inventou o carioca?”. Oferecer, na tela, sugestões de nomes em breves biografias de, por exemplo, Noel Rosa, que aproximou os sambistas do Estácio com os da Mangueira e inaugurou a MPB. Outros saudosos inventores da raça carioca: Madame Satã (a vocação para a malandragem), Millôr Fernandes (o intelectual praieiro), Leila Diniz (a mulher liberada), João Saldanha (o futebolista sem medo), Pereira Passos (o visionário), Vinicius de Moraes (o boêmio intelectual) e Braguinha (o velhinho sassaricante). Aos sobreviventes, perguntar como definiriam em uma palavra o carioca: se maneiro, sinistro ou ixxxperto. Pedir a um fonoaudiólogo como foi se formando o chiado característico da fala carioca.
12. Os religiosos. O filme é pan-religioso. Procurar, nas salas dos edifícios de Ipanema, uma das formas de sincretismo religioso da cidade, as mães Valérias que se anunciam nos postes do bairro como capazes de trazer em três dias o amor perdido dois dias atrás para alguma vagabunda de fim de semana. Ouvir os pais de santo da umbanda sobre o fim das galinhas pretas sem pescoço, cercadas de garrafas de cachaça e velas pretas, nos alguidares das esquinas de sexta-feira. Ir na Comlurb. Pesquisar quantas oferendas o órgão recolhia em 1960 e quantas agora. Remontar para as novas gerações um despacho na  esquina de Siqueira Campos com Barata Ribeiro. Ouvir na Igreja de Nossa Senhora da Paz o Padre Jorjão cantando “A montanha”, do repertório de Roberto Carlos, e na livraria do Leblon documentar as celebridades que participam da primeira aula de um novo curso da cabala, da linha adotada pela Madonna na faixa três de seu último CD.
13. Os homens sérios. Eles existem, mas se orgulham de não serem tão sérios assim. O milionário Eike Batista foi casado com a mulher que inventou o posto de musa de bateria e um dia ela desfilou com o nome do marido orgulhosamente bordado em pedras preciosas, numa gargantilha de autenticação de propriedade. Filmar “a merenda”, na Academia Brasileira de Letras. É um almoço mensal em que o presidente da casa, o imortal pernambucano Marcos Vilaça, reúne o leque da sociedade carioca e junta, na mesma mesa, o técnico Joel Santana, o escritor Edney Silvestre, a empresária- batuqueira Tanit Galdeano, o cantor Lenine e embaixadores de todas as etnias. A sobremesa é bolo de rolo. Este bloco sobre os homens sérios (mas ninguém é de ferro) deve se encerrar com o prefeito Eduardo Paes tocando tamborim num desfile. Perguntar-lhe, no escritório, cercado das telas de TV por onde monitora a cidade em tempo real, qual o maior dos seus orgulhos, se sediar as Olimpíadas, se disciplinar as praias, se organizar o trânsito na Nossa Senhora de Copacabana. Ele dirá “ser compositor da Portela”. Registrar com urgência o arquiteto Oscar Niemeyer. Talvez o mais célebre homem sério carioca, de renome mundial, ele fez a Apoteose, no Sambódromo, um monumento em formato de bunda.
14. As bundas. Elas vão ganhar no filme status de personagens, de gente viva, pois são quase uma entidade à parte em meio aos cariocas. Mostrar a evolução da espécie depois de um século de exibição. As bundas não aparecem nas gravuras de Debret, mas com a chegada das primeiras câmeras fotográficas trazidas por Pedro II já há registros, a pretexto de antropologia acadêmica, de negras nuas. Daí em diante não se fez outra coisa. Ir ao Museu Nacional de Belas Artes e registrar o Rodolfo Amoedo em que uma mulher, embora branca, mostra não ficar atrás, e exibe seu impressionante derrière. É diante dele, segundo pesquisas não oficiais, que os visitantes permanecem parados por mais tempo. “A primeira missa”, de Victor Meirelles, vem em seguida. Comparar as medidas da bailarina Eros Volúsia, no início do século (90cm), com as de Valeska Popozuda (104) e perguntar aos especialistas, meus senhores, onde vamos parar? 

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