Era uma plateia de adolescentes,
todos ouvidos e atentos ao que estava sendo dito sobre os caminhos da crônica.
Com um jeito ao mesmo tempo educado e agressivo, a moça mais ao fundo levantou
o dedo para fazer uma pergunta. Tinha o cabelo estilosamente espantado, com
aquele ar de desleixo que só os melhores xampus conseguem. Ela queria saber do
palestrante:
“Qual a
posição da crônica diante da questão social no Centro da cidade?”
O
palestrante era eu.
Mais uma vez, em agradecimento
aos deuses dessa literatura de bermudas, eu estava diante de estudantes, agora
no auditório da fabulosa Biblioteca Parque da Presidente Vargas, e historiava
os grandes momentos da crônica carioca. Tratava-se, como eu havia dito logo de
início na palestra, de um gênero dedicado a distribuir acima de tudo o pão do
espírito, o prazer da boa leitura.
A pergunta sobre a questão social
era, evidentemente, uma provocação.
Eu acabara de dizer que a crônica
mais importante jamais escrita passava-se justamente no Centro da cidade,
alguns quarteirões adiante, a inestimável “A borboleta amarela”, de Rubem Braga.
É um texto clássico, publicado em capítulos por três dias seguidos. Virou um
resumo do gênero. Tudo que acontece nele é apenas o voo de uma borboleta. Começa
na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre, segue através desta até a
Rio Branco e desce à esquerda, quando as asas amarelas finalmente se perdem,
naquele setembro de 1952, nos céus sobre a Biblioteca Nacional. Só e nada além,
a não ser o deslumbrante estilo de RB.
No breve segundo que usei para
organizar mentalmente a resposta à jovem, uma das fichas pesquisadas no meu cerebelo
esquerdo foi a de outra célebre crônica, desta vez de Paulo Mendes Campos, a
adorável “Ser brotinho”. PMC perfila com poesia uma menina rebelde do final dos
anos 1950, e enumera dezenas de suas deliciosas idiossincrasias. Num trecho, depois
de dizer que “ser brotinho é lançar fogo pelos olhos”, completa: “é fazer
marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens”.
Ter lembrado da crônica e
constatar ao vivo que as gatas de hoje, os brotinhos de sempre, continuam
cumprindo seu papel de achar “muito estranha a vida sobre a terra” – aquilo me
deixou ainda mais em paz com a sabedoria dos cronistas, a eterna marcação
cerrada das gatinhas e a renovação do ciclo da vida.
No texto de PMC, o brotinho
achava os amigos do pai com cara de pincel de barba e, ia-se ver, não é que o
sujeito tinha mesmo cara de pincel de barba? Pois o brotinho da biblioteca da
Presidente Vargas estava me achando com cara de pincel de barba. Antes que eu
respondesse sobre “a questão social”, reforçou a pergunta:
“O que a crônica carioca faz para
protestar contra exclusão social no Centro do Rio?”
Definitivamente, os tempos andam
irados, e a gatinha da biblioteca estava ali para confirmar. “Morte ao pincel
de barba”, “A crônica não me representa”, era o que eu ouvia nas entrelinhas
das perguntas, saídas de sua boca modernamente abrilhantada por um gloss fosforescente.
As questões dela moviam-se pela urgência radical. A necessidade de que agora era
preciso avançar politicamente, pois as dúvidas existenciais do brotinho antigo
já tinham sido todas resolvidas nas décadas seguintes por suas mães, tias e
Leila Diniz. A estudante queria que a crônica deixasse de poesia numa hora
dessas. Tomasse posição – e marchasse de punhos cerrados.
Ao retomar a palavra, falei do
dândi João do Rio, craque em misturar crônica com reportagem e sair andando
pelas misérias do Centro do Rio, relatando seus becos e o que ainda havia de
culturas africanas no Morro de Santo Antonio. Fiquei aí. Poderia apresentar a
figura de Lima Barreto, atacando os que demoliam o Morro do Castelo, justo ali,
na Graça Aranha, onde depois a borboleta flanaria. Era o que a estudante gostaria
de ouvir, o engajamento de quem escreve. Era também o que me faria ficar bem
com a moça, esse projeto maior que no fundo une todos os cronistas. Preferi
não.
Uma crônica se define pelo prazer
da leitura, pela subjetividade original da narrativa. Um artigo vale pela
opinião ou veemência. Mas evidentemente, já que estamos falando de malandros
mexendo com as palavras, mágicos do ponto e vírgula, todo cuidado é pouco. Eles
enganam muito.
É de cunho social, por exemplo, “O
conde e o passarinho”, a crônica em que o onipresente Rubem Braga põe o segundo
para roubar com o bico a medalha que o primeiro (o conde Matarazzo),
injustamente, acabara de receber. Em outras mãos, a cena poderia se transformar
num discurso contra os poderosos. Conduzida pelo bom humor de RB, dava o recado
e ao mesmo tempo deixava, no meio do jornal, o leitor viajar por campos
líricos.
A crônica está sempre de olho no
seu tempo, mas disfarça com outras palavras. Não discursa, não usa o dedo em
riste, não sobe em palanque, não vocifera, não posa de ilustríssima, nem
paga-regra sobre o que quer que seja da conjuntura nacional.
“Quando a questão se faz aguda”,
eu disse, “não é crônica” – e fiz o ponto final da palestra, carregando na
minha miopia a rápida impressão de ter visto o brotinho sorrindo em
consideração. Depois saí de cena. Pus os pés de volta na realidade brutal da
Presidente Vargas.
Há engarrafamentos por todos os lados, um mau
humor generalizado e o noticiário de que todo o caos na Rio Branco é para
trazer, modernizado, o bonde de volta. Façam bom proveito, senhores, e subam aos
estribos. Das nostalgias, eu prefiro a poesia libertadora escrita no voo das
borboletas.
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