Morreu na semana passada, vítima da gentrificação, da caretização e doutros palavrões que acometem a cidade, o restaurante 28
Morreu na semana passada, vítima da gentrificação, da caretização e doutros palavrões que acometem a cidade, o restaurante 28. Ficava atrás da Central, na Rua Barão de São Félix, número 28, daí o nome no letreiro. Por mais de século fez o melhor cabrito com batatas coradas do Rio. Fechou. É uma tragédia para o Rio.
As portas se cerraram no mesmo dia em que as autoridades municipais davam festa em palácio para o lançamento da edição nacional do Michelin. É o guia francês que, às custas da distribuição de estrelas, ajudou a fechar o 28 e, aos poucos, vai fazer com que as mesas sobreviventes tentem ficar na próxima edição com o mesmo gosto das mesas que ganharam estrelas na edição passada. É a gastronomia da mesmice que assola o planeta.
O 28 era um desses restaurantes antigos do Centro, dirigido por sucessivas gerações de portugueses. Servia comida farta, de gosto forte e bom preço. Era História também. Uma obra da prefeitura fechou a rua e o comerciante, longos meses sem faturar, passou o ponto.
Tinha uma velha cozinheira negra no comando das panelas, a mesma geladeira de madeira desde 1950 e um cardápio onde se anunciava o serviço “de almoços e jantares com asseio e prontidão”. Falava de um mundo que não existia mais, mas por isso mesmo precisava ser visto — e comido.
Já não servia jantares faz tempo, porque a barra ao redor estava pesada demais para se circular à noite. Agora também fechou para almoço, porque alguém cheio de carimbos na mão mandou, como é de costume na cidade, começar tudo de novo por ali. Em seu lugar surgirá mais um hotel, certamente com uma comida de olho na estrela Michelin. Atenderá aos anseios civilizatórios do Porto Maravilha.
A carne do cabrito fazia parte da cultura carioca, da mesma maneira que o balcão comprido e a tabuleta posta sobre ele. Anunciava a cerveja Bip Hop, os refrigerantes Tab e Graçola, todas marcas desaparecidas, como também agora é, desde a semana passada, o próprio 28, o restaurante que na papelada burocrática atendia por Pastoria, seu nome de origem, em 1910. Parecia a comida da casa das pessoas comuns. Tinha língua, dobradinha e outros esquecimentos.
A carne do cabrito era marinada na véspera em vinho, louro, alho, cebola e sal grosso. Depois de assada, levava molho de cebola, tomate, pimenta e salsinha. Servida com batata corada, a carne se desprendia dos ossos sem esforço e, fibra por fibra, ajudava a moldar a alma de uma cidade. Lambiam-se os beiços, empanturrava-se o freguês à farta — e todas as demais expressões que o gastronomicamente correto tirou da mesa.
Um bom programa para quem queria fugir dos cartões postais era pegar o Morro da Conceição pela escadaria atrás da Rádio Nacional, subir a Ladeira João Homem, flanar pela Rua do Jogo da Bola, atravessar o Observatório do Valongo, descer na Camerino, cruzar a rua e, meia dúzia de prédios adiante, já na Barão de São Félix, recuperar as energias almoçando no 28. Em meia hora percorriam-se muitos séculos. Depois, curtia-se a memória digestiva.
O Morro da Conceição, um dos mais deliciosos segredos do Rio, está um brinco e espera ansioso o que lhe acontecerá quando os turistas do Museu do Amanhã e do MAR, na Praça Mauá, subirem suas ladeiras. O restaurante do hotel que surgirá no 28 certamente vai servir comida ao gosto do que supõe ser o gosto internacional — e frustrará os que vieram aqui justo para experimentar o paladar de povos diferentes.
O Rio quer ficar igual Barcelona ou uma dessas cidades degradadas, salvas por grandes eventos como as Olimpíadas. Da mesma maneira que no século passado botou o Morro do Castelo abaixo para se parecer com Paris, desta vez quer ficar espanhola, comensal do Adrià, magra, e para isso já extirpou a estria da Perimetral. Perder um restaurante, o estômago da cidade, é outra coisa. Na porta tinha uma placa informando que a prefeitura estava orgulhosa, no início deste século, de declarar o 28 patrimônio histórico e, portanto, inquestionável no culto perene ao cabrito que alimentou várias gerações. Não foi bem assim. A placa era de acrílico. De verdade, mesmo, era a máquina registradora, de 1960. Sem movimento, enferrujou.
Ninguém pode ser contra um projeto de devolver aos cidadãos aquele maravilhoso canto espremido entre o Porto e a Presidente Vargas. Gamboa, Saúde e Santo Cristo, os bairros dali, soam mais distantes para a amedrontada classe média carioca do que atravessar a ponte do Brooklyn e chegar em Williamsburg. Tem prostituta, cracudo, prédios ocupados e montanhas de lixo. Mas é preciso cuidado com a picareta desvairada. O fogão do 28 fazia parte dos monumentos da cidade e, por uma questão básica de sobrevivência, é preciso proteger os pratos e as mesas que, misturando comidas dos portugueses e dos africanos, colocaram de pé o samba, a prontidão e todas as demais bossas da carioquice.
A cidade pode perder uns quilos, mas vai ficando sem suas tradições. Junte-se ao 28 o fechamento do Penafiel, do Ficha, do Lisboeta, do Cabaça Grande e outros restaurantes clássicos do Centro, todos de comida sem compromisso com a balança, mas com um sabor afetivo que as estrelas do Michelin não sabem como pontuar. A tendência é trocar tudo por um punhado de bufês operando o jogo rápido e impessoal da comida a quilo. É outra tragédia. A cidade periga ficar com a cara dessas mulheres muito botocadas, a bochecha rosinha de tão esticada, quase bunda de bebê de tão lisinha. Crentes que estão agradando, elas na verdade parecem pavorosamente sem idade e sem a indispensável nobreza das marcas passadas. Irreconhecíveis.
No caso da mulher, diz-se que é erro de pessoa. No caso do Rio, erro de cidade.
Morreu na semana passada, vítima da gentrificação, da caretização e doutros palavrões que acometem a cidade, o restaurante 28. Ficava atrás da Central, na Rua Barão de São Félix, número 28, daí o nome no letreiro. Por mais de século fez o melhor cabrito com batatas coradas do Rio. Fechou. É uma tragédia para o Rio.
As portas se cerraram no mesmo dia em que as autoridades municipais davam festa em palácio para o lançamento da edição nacional do Michelin. É o guia francês que, às custas da distribuição de estrelas, ajudou a fechar o 28 e, aos poucos, vai fazer com que as mesas sobreviventes tentem ficar na próxima edição com o mesmo gosto das mesas que ganharam estrelas na edição passada. É a gastronomia da mesmice que assola o planeta.
O 28 era um desses restaurantes antigos do Centro, dirigido por sucessivas gerações de portugueses. Servia comida farta, de gosto forte e bom preço. Era História também. Uma obra da prefeitura fechou a rua e o comerciante, longos meses sem faturar, passou o ponto.
Tinha uma velha cozinheira negra no comando das panelas, a mesma geladeira de madeira desde 1950 e um cardápio onde se anunciava o serviço “de almoços e jantares com asseio e prontidão”. Falava de um mundo que não existia mais, mas por isso mesmo precisava ser visto — e comido.
Já não servia jantares faz tempo, porque a barra ao redor estava pesada demais para se circular à noite. Agora também fechou para almoço, porque alguém cheio de carimbos na mão mandou, como é de costume na cidade, começar tudo de novo por ali. Em seu lugar surgirá mais um hotel, certamente com uma comida de olho na estrela Michelin. Atenderá aos anseios civilizatórios do Porto Maravilha.
A carne do cabrito fazia parte da cultura carioca, da mesma maneira que o balcão comprido e a tabuleta posta sobre ele. Anunciava a cerveja Bip Hop, os refrigerantes Tab e Graçola, todas marcas desaparecidas, como também agora é, desde a semana passada, o próprio 28, o restaurante que na papelada burocrática atendia por Pastoria, seu nome de origem, em 1910. Parecia a comida da casa das pessoas comuns. Tinha língua, dobradinha e outros esquecimentos.
A carne do cabrito era marinada na véspera em vinho, louro, alho, cebola e sal grosso. Depois de assada, levava molho de cebola, tomate, pimenta e salsinha. Servida com batata corada, a carne se desprendia dos ossos sem esforço e, fibra por fibra, ajudava a moldar a alma de uma cidade. Lambiam-se os beiços, empanturrava-se o freguês à farta — e todas as demais expressões que o gastronomicamente correto tirou da mesa.
Um bom programa para quem queria fugir dos cartões postais era pegar o Morro da Conceição pela escadaria atrás da Rádio Nacional, subir a Ladeira João Homem, flanar pela Rua do Jogo da Bola, atravessar o Observatório do Valongo, descer na Camerino, cruzar a rua e, meia dúzia de prédios adiante, já na Barão de São Félix, recuperar as energias almoçando no 28. Em meia hora percorriam-se muitos séculos. Depois, curtia-se a memória digestiva.
O Morro da Conceição, um dos mais deliciosos segredos do Rio, está um brinco e espera ansioso o que lhe acontecerá quando os turistas do Museu do Amanhã e do MAR, na Praça Mauá, subirem suas ladeiras. O restaurante do hotel que surgirá no 28 certamente vai servir comida ao gosto do que supõe ser o gosto internacional — e frustrará os que vieram aqui justo para experimentar o paladar de povos diferentes.
O Rio quer ficar igual Barcelona ou uma dessas cidades degradadas, salvas por grandes eventos como as Olimpíadas. Da mesma maneira que no século passado botou o Morro do Castelo abaixo para se parecer com Paris, desta vez quer ficar espanhola, comensal do Adrià, magra, e para isso já extirpou a estria da Perimetral. Perder um restaurante, o estômago da cidade, é outra coisa. Na porta tinha uma placa informando que a prefeitura estava orgulhosa, no início deste século, de declarar o 28 patrimônio histórico e, portanto, inquestionável no culto perene ao cabrito que alimentou várias gerações. Não foi bem assim. A placa era de acrílico. De verdade, mesmo, era a máquina registradora, de 1960. Sem movimento, enferrujou.
Ninguém pode ser contra um projeto de devolver aos cidadãos aquele maravilhoso canto espremido entre o Porto e a Presidente Vargas. Gamboa, Saúde e Santo Cristo, os bairros dali, soam mais distantes para a amedrontada classe média carioca do que atravessar a ponte do Brooklyn e chegar em Williamsburg. Tem prostituta, cracudo, prédios ocupados e montanhas de lixo. Mas é preciso cuidado com a picareta desvairada. O fogão do 28 fazia parte dos monumentos da cidade e, por uma questão básica de sobrevivência, é preciso proteger os pratos e as mesas que, misturando comidas dos portugueses e dos africanos, colocaram de pé o samba, a prontidão e todas as demais bossas da carioquice.
A cidade pode perder uns quilos, mas vai ficando sem suas tradições. Junte-se ao 28 o fechamento do Penafiel, do Ficha, do Lisboeta, do Cabaça Grande e outros restaurantes clássicos do Centro, todos de comida sem compromisso com a balança, mas com um sabor afetivo que as estrelas do Michelin não sabem como pontuar. A tendência é trocar tudo por um punhado de bufês operando o jogo rápido e impessoal da comida a quilo. É outra tragédia. A cidade periga ficar com a cara dessas mulheres muito botocadas, a bochecha rosinha de tão esticada, quase bunda de bebê de tão lisinha. Crentes que estão agradando, elas na verdade parecem pavorosamente sem idade e sem a indispensável nobreza das marcas passadas. Irreconhecíveis.
No caso da mulher, diz-se que é erro de pessoa. No caso do Rio, erro de cidade.
Se levarmos em conta que a América portuguesa é aquí,e o Rio é o seu berço, teremos provavelmente assistido à morte do mais antigo restaurante genuinamente português das Américas, fundado ha 105 anos,sempre no mesmo endereço e todo esse tempo nas mãos da mesma família.Premiadíssimo,tradissionalíssimo e em prédio histórico tombado, foi arrancado de nossa cultura. Pobre português Amândio.Foi triste vê-lo retirando-se tão triste.
ResponderExcluirPrefeitura sem noção !! que a vida das cidades brilha por pequenas estrelas de restaurantes de tradição familiar.
ResponderExcluirEm vez de promover…..
Simplesmente IGNORAR e dificultam 😡😡😡
ADORAVA ESSE RESTAURANTE QUE CONHECI EM 2005. SENSACIONAL. COMIDA FARTA, EXCELENTE ATENDIMENTO. MUITA SAUDADE!
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