O subúrbio de Tufão,
Carminha e Nei Lopes
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Imgs da internet |
Ponham-se
todos a bordo e deem um passinho à frente, por favor, porque vai começar a
viagem pelos arredores da Avenida Brasil, a mata funda do sertão carioca onde
os personagens da novela de João Emanuel Carneiro perpetram suas maldades
contra crianças, pobres, mulheres bonitas e quem mais for escalado para sofrer o
pudim de pão que o diabo amassou.
O
mensalão é pinto, a Rio+20 é conversa jogada fora. Não se fala de outra coisa
neste imenso Bananão: a vingança de Nina, a suburbaninha.
Se
Carminha é mãe, se Deus é pai, se Nicuri é o Diabo e, principalmente, se
Suellen é tudo de bom como mostra no balcão do kuduro, por que ela não dá as
caras lá em casa e canta “Para nossa alegria” no sofá macio da nossa sala tão
vazia?
Ponham-se
todos a bordo deste ônibus sem ar refrigerado, mas que tem refresco de
groselha, tem biscoito de polvilho e a Caras com o drama do Gianecchini. Vai
começar a viagem pelos arredores do campo do Divino, pelo salão de beleza da
Monalisa e o lixão da Lucinda. O motorista desta Magical Mistery Tour cabocla é o advogado-escritor e compositor Nei
Lopes. Cante comigo, galera, quero ouvir o batuque na lataria: “Se essa porra não
virar, olê, olê, olá, eu chego lá”.
Nei
acabou de arremessar nas livrarias o seu Dicionário da Hinterlândia Carioca, entendendo-se
hinterlândia como zona periférica, o subúrbio, o cenário onde a novela dança o
kuduro, faz churrasco de alcatra e nos próximos capítulos deve receber os
ectoplasmas da Fera da Penha, do Seu Sete da Lira e do Tenório Cavalcanti.
Para
andar em Nova York carrega-se o Michelin embaixo do braço. Para trotar nos
cafundós da Avenida Brasil chegou o guia do Nei. É com esse que eu vou traçar
uns bolinhos no Rei do Bacalhau no Encantado.
O
livro percorre 808,08 dos 1.224,56km quadrados onde estão 101 dos 160 bairros
do Rio, um aglomerado de 4.580.140 pessoas das 6.320.446 que viviam na cidade
no censo de 2010. É Rio em estado bruto, do bicho pegando, do tá com medo tabaréu,
o paraíso da nova Classe C, a terra do funk safadinho, do pagodemela-cueca e de
outros parangolés que Nei Lopes mostra pela janela do livro em mais de dois mil
verbetes.
O
primeiro é “À Bangu”, significando “sem regras” e originado das partidas do
Bangu Atlético Clube, quando na infância do futebol brasileiro o jogo sofria
ainda de grassa desorganização. O último é “Zuzuca”, o compositor do Salgueiro
que fez em 1971 o “Pega no ganzê” e acelerou o ritmo do samba-enredo.
É
subúrbio que não acaba mais, tem Torquato Neto internado no hospício do Engenho
de Dentro, os biscoitos goiabinha da fábrica da Piraquê, a vedete Zaquia Jorge
saindo do teatro de Madureira para morrer afogada na Barra da Tijuca e os
paralelepípedos imortais de Quintino onde Zico rolou bolas de meia de nylon
preenchidas com jornal velho.
O
Tufão da novela mora mais adiante e Nei Lopes pede a todos que fiquem com o
olho da máquina fotográfica bem aberto para não perder o clique quando o ônibus
passar na porta do ex-craque, agora às voltas com os dribles da vadia da
Carminha. A casa deles é depois do Mercadão, é depois do coreto do Méier, é ali
onde Judas perdeu as botas e, no meio da rua, tem um bando de menino gritando
que é bola ou búlica, que time é teu?, jacaré no seco anda?, e o diabo a
quatro.
O
Divino da novela é força de imaginação, mas tem as mesmas garotas que dançam
embaixo do viaduto de Madureira e outras tantas que lançaram para o país a moda
Nem, aquela do short atochado e que deixa o fundo dos bolsos aparecendo no meio
das coxas. São as mulheres mais gostosas do Brasil. A Xuxa, de Bento Ribeiro, era,
a Luiza Brunet, da Piedade, era. Agora as pagodeiras Graciane e a Viviane é que
são.
A última
vez que um bacana registrou ter passado por aqui foi quando Vinicius de Moraes,
indo para São Paulo no Trem de Prata, olhou para fora. Ele viu que as casinhas
tinham em cima escrito que era um lar, cadeiras na calçada, uma multidão de
gente humilde, e o quadro deu no poetinha a tal vontade de chorar. Foi nos anos
60, música antiga. Os inocentes mudaram-se do subúrbio e agora também existe
pecado do lado debaixo da Avenida Brasil. O bicho pega. A mãe põe os filhos no
lixão. A periguete dá o golpe da barriga.
Pois
fica tudo logo ali por onde acabamos de passear, logo atrás do Bicão que
enfeita o largo no início da Avenida Brás de Pina, logo nas cercanias do alçapão
da Rua Bariri, pouco depois da Boca do Mato e da esquina onde o vento faz a
curva. Antes havia o conversível do bicheiro jogando dinheiro para os moleques
que corriam atrás. Alguns garotos morreram, outros mataram para sobreviver,
outros ainda viraram jornalistas de um grande jornal da capital. Isso tudo foi
no outrora da hinterlândia e está no passeio de Nei Lopes à guisa de memória, de
bento-que-bento-é-o-frade e chicotinho queimado, pois a realidade é a dos helicópteros
com miras telescópicas noturnas, das lan houses e do teleférico supersônico do Complexo
do Alemão. Do passado, o subúrbio da novela ficou apenas com a traiçoeira
gilete na rabiola da pipa.
Não
há mais coitadinhos em cena, não têm mais carrinho de rolimã nem pêra-uva-ou-maçã.
Nina saiu do lixão e, empregada sempre de uniforme cor de sangue, vê chegar a
hora da vingança-vingança aos santos clamar. Eis o subúrbio. Ele ascendeu, usa
cordão de ouro no peito do Silas e virou deputado federal na ilustre figura do
vila-da-penhense Romário. É o poder do horário nobre, a grana que o Lula distribuiu
pelos bolsos, o coxão furioso das cachorras da academia, o país do futuro que finalmente
chegou no portão. Marrento, o suburbano tatuou no braço a nova identidade local:
“Tigrão tá podendo”.
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