*Veja aqui o especial da Globonews sobre os 100 anos de Rubens Braga (com entrevista de Joaquim, claro!) e o que nosso cronista escreveu no caderno especial de O Globo sobre o escritor
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Rubem Braga / Foto da internet |
Foi a única vez em que estive com aquele de
quem se comemora agora o centenário, o nunca suficientemente assaz louvado
Rubem Braga, papa da crônica brasileira e momentaneamente papão, pois naquele
momento em que eu o encontrei ele batia um prato de croquetes.
Era a festa de 60 anos
do psicanalista Hélio Pellegrino, seu amigo de fé, e eu estava lá de bloquinho
em punho, uma pena presa ao chapéu com a etiqueta Press, um repórter típico de
cinema americano fazendo uma matéria para o “Jornal do Brasil”.
Rubem Braga era
chamado por si próprio de velho urso, em parte porque de estatura roçando 1,90m
e em outra parte porque não era de sorrisos e oba-oba. Falava pouco, aos grunhidos.
Os amigos não se incomodavam que permanecesse em silêncio.
“Se o Rubem”, me dizia
Fernando Sabino na festa, “falasse como escreve, não sobrava mulher nenhuma pra
nós. Ele pegava todas”.
O homem escrevendo
tinha as mãos regidas pelo canto dos sabiás, seus personagens mágicos de muitos
textos. Ia conversando leve sobre as coisas bonitas da vida, saudava com estilo
a maravilha de se devolver com um chute perfeito a bola que escapava da pelada dos
meninos no outro lado da rua.
Rubem Braga, com a
caneta na mão, foi a melhor conversa da literatura brasileira, uma palavra
puxava a outra, e ele nos levava no papo. Puxava uma melancolia de vez em quando,
mas sem angústia triste, apenas uma saudade terna das jabuticabeiras da infância
em Cachoeiro de Itapemirim, uma memória que sinalizava o bom coração por dentro
daquele homem pessoalmente de jeito tão endurecido, zero de sorriso. Gostava
acima de tudo da presença feminina e estava sempre redigindo algum elogio ao
vestido leve com que vira, na esquina de Visconde de Pirajá com Teixeira de
Melo, uma adolescente saudar os primeiros raios de sol da primavera.
A sorte de todos os
machos ao redor de Rubem Braga era que ao vivo ele não tinha paciência para
tanto. Era homem alto, forte, rosto que sugeria certo respeito viril a ser
generosamente empregado quando fosse preciso tomar a rédea as ações, e isso
evidentemente dedilhou as harpas escondidas nos corações femininos. Tônia Carrero,
uma das mais bonitas mulheres brasileiras de todos os tempos, esteve ao seu
lado como namorada quase secreta durante anos.
Naquela festa de Hélio
Pellegrino, Braga estava mais urso do que nunca, deslocado num canto enquanto
“Balancê”, num LP da Gal Costa, enchia a pista. Não conversava com ninguém. Sempre
casmurro, batia o seu prato de croquetes em meio à bagunça dos amigos, todos
brilhantes, todos gênios da raça nos afazeres que escolheram para tocar a vida,
e também divertidíssimos ao vivo.
Otto Lara Resende me
contava como convencera Pellegrino a dar a festa.
“Eu disse pra ele,
você está querendo fugir de quê, Hélio? Fuja para a frente, deixe os outros gostarem
de você. Faça 60 anos com altivez, ora. Até parece que você não é analisado.” Dina
Sfat jogava os cabelos para trás (“adorei o Shakespeare em alemão a que assisti
na Espanha”), mais adiante Ferreira Gullar falava do novo livro de poesia.
Todos foram fartos em boas declarações a este repórter.
“Valeu a pena”, foi
como Helio Pelegrino começou o seu balanço da vida até aquele momento. “Investi
na amizade, no capital erótico, e não me arrependo. A salvação está em você se
dar, se aplicar aos outros. A única coisa não perdoável é não fazer. É preciso vencer
esse encaramujamento narcísico, essa tendência à uteração, ao suicídio. Ser
curioso. Você só se conhece conhecendo o mundo. Somos um fio desse imenso
tapete cósmico. Mas haja saco!”
Nosso urso, talvez
porque já tivesse visto a II Guerra Mundial no próprio campo de batalha, talvez
porque tivesse visto uma loura chamada Norka Ruskaia dançar nua no Teatro Fênix,
talvez porque tivesse descoberto o milagre por trás da pigmentação da cauda do pavão
— talvez porque a vida já lhe tivesse provocado os espantos suficientes, ele
permaneceu encaramujado no seu canto a noite inteira, agora já atracado ao seu
copo de uísque. Olhava as mulheres, mas parecia especialmente cansado.
“Ô Rubem, fala aqui
pro repórter do ‘Jornal do Brasil’”, provocou Fernando Sabino, “o que você acha
da personalidade do psicanalista aniversariante”.
Rubem Braga, que já
tinha se deixado fazer de pele a noite inteira pelos amigos, todos tirando sarro
com a sua casmurrice, virou-se para este humilde foca, eternamente atrás das
suas sardinhas de informação, e mandou que escrevesse no bloquinho.
“Anota aí”, disse com
a voz mais grave do seu repertório de assustar o próximo. “O aniversariante é
um doido varrido” — e, sorrindo por dentro, voltou a mexer as pedras de gelo em
silêncio.
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