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Antigamente, muito antes de o prefeito Eduardo Paes ir lá fora fumar um
cigarro na calçada do restaurante japonês, o funcionário público municipal
deixava o paletó na cadeira e anunciava peremptório, palavra que se faz necessária
para dar o longínquo da época, que ia ali na esquina tomar um cafezinho. Os dois gestos são para fugir do
assunto, deixar de estar onde se deveria. Nada contra,mas atenção. São coisas
diferentes.
Funcionários públicos, mas não só eles, todos nós, servidores a esta
vida tão sufocante e sem sentido, temos a necessidade de algumas vezes por dia
abandonar o maldito fardo de lado, tantos memorandos para responder, e ir lá
fora fazer alguma coisa que não seja aquela que pelo contrato no RH precisamos resolver.
Justíssimo.
A vida precisa ter algum sentido extra, mais sobrenatural e divino, do
que o de passar oito horas dentro de um prédio carimbando “nada consta” ou “caiu em exigência” sobre documentos alheios. Que tal ir lá fora ver
se o inesperado nos faz a surpresa de uma música ou a felicidade nos bate à
porta, dando a tudo prumo e sentido?
A esperança move o homem, e se o antigo deixava o chapéu sobre a mesa
para sugerir que estava de cabeça presente, o funcionário moderno da existência
municipal deixa a tela do computador acesa, como se fosse uma vela digital,
para informar aos desconfiados que sua alma vaga por ali, não demorará a
reaparecer, espere. É saudável a disposição dos que se movem em busca de uma
forma de respiro. Mas definitivamente ir lá fora fumar um cigarro é bem
diferente de ir lá fora tomar o cafezinho.
O fumódromo na calçada é o novo exílio urbano, um lugar aonde se vai
obrigado pela lei. É a humilhação que a sociedade faz questão de tornar pública
aos inimigos da saúde pública, aqueles que apesar de todos os avisos no
envelope dos cigarros em breve estarão, no mesmo ritmo da nicotina em seus pulmões,
esburacando o orçamento dos hospitais.
Eu, que não tenho autoridade nem sobre as minhas vírgulas, a toda hora
me pregando peças e fazendo mal à saúde gramatical dos leitores — eu acho que todos têm o direito de se tratarem como acham que merecem.
Que se fumem, que se mandem brasa nos pulmões. Que suas fumaças tracem céu
acima as volutas de poesia que a vida real não lhes dá aqui embaixo. Mas tomem
seus cuidados, e aqui vai o grito de alerta: cigarro na calçada potencializa os
riscos da tragada.
O fumódromo, como aquele em que se meteu o prefeito, tem tudo para ser
um octógono, o ringue de lutas urbano onde se esbarram as tensões sociais dos
excluídos. Há mendigos pedindo a guimba, flanelinhas pedindo um troco, bicheiros
anotando o jogo e a sonorização de guerra orquestrada pelo trânsito. As tensões
pululam.
O sujeito que vai lá fora puxar o cigarro, na justa expectativa de ver
uma chuva de estrelas dentro da cabeça, acaba contaminado pela tempestade de
fuligem que escapa dos carros. Saiu do inferno funcional do escritório, caiu no
vale tudo da cidade. Deve ter sido aí, a história é um sushi confuso, que o tal
artista passou pelo prefeito e gritou “seu bosta”. Talvez nem fosse um comentário político. Eu acho
que era mais uma crítica àquele jeito fumacento de Paes levar a vida no meio da
rua.
Ir lá fora fumar um cigarro seria, literariamente, uma reportagem
policial, com direito à transcrição de um trecho do boletim de ocorrência, de
preferência aquele que comece com a inevitável afirmação de que “a vítima obtemperou”.
Já escafeder-se do batente para tomar um cafezinho soa como uma crônica
poética de Rubem Braga. Não há lei alguma que obrigue o cidadão ao movimento de
ir ao boteco da esquina se empanturrar de cafeína. Trata- se do mais delicioso
exercício de livre arbítrio, a única ordem de um dia inteiro que é ditada por
ele mesmo, o funcionário. O impulso irresistível ao café faz com que, na contramão
das necessidades de entregar “para ontem” o organograma de algum projeto burocrático, o ser humano se levante prenhe
de razão — e vá feliz ao que sugere o coração.
As páginas de Ciência dos jornais dizem que a cafeína está por trás de
crises de taquicardia, tem culpa na pressão alta e é responsável pela insônia
que grassa na Humanidade. Seria um monstro tão negro quanto o tabaco. Não sei,
não sabe ninguém, como cantava o fado que me criou. Eu sou apenas um cronista
de segunda. Se estou defendendo o direito de todos irem ali fora dar um tempo, driblar
a morte, fugir do credor, fumar um cigarro ou tomar um café, faço-o em
desabusada causa própria. Vamos ali fora flanar, chutar tampinha, mudar de
assunto, pegar leve? Vamos lá fora não fazer nada?
Só posso defender a ida ao café, Joaquim (não só por razões profissionais). Não fazer nada é melhor ainda. Mas, hum, é preciso intensa preparação psicológica, é simples mas não é fácil. O sujeito pára e já começa a ruminar, é o compromisso, a empregada, aquele e-mail pra responder... Batuca na mesa. Começa a pensar. O café e o cigarro satisfazem a intensa necessidade de fazer alguma coisa quando não se está fazendo nada. E dá-lhe cafeína para gente não fazer nada com mais ímpeto, ligadão! Soube do livro novo. Vem tomar um café comigo, pra gente não fazer nada juntos? Vc vai ser tão mal atendido como sempre, mas a companhia é amiga. Um abraço, Linck.
ResponderExcluirÉ o ócio criativo! Sair para tomar um café, fumar cigarro ou, simplesmente, não fazer nada e só tomar um ar é, acima de tudo, uma pausa para si e para se recompor energeticamente! Um intervalo para dizer que, sim, eu não sou máquina, não, embora teimem em pensar isso de mim, e eu também corrobore a ideia! São as pausas que fazem a gente se sentir vivo e humano! O que seria da atividade se não fosse a pausa? E da pausa, se não fosse a atividade? São como unha e carne, pele e osso e alma e corpo!
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