O chão vai tremer (06/01/2014)

*Esta crônica marca a volta do jornalista à última página do Segundo Caderno de O Globo. 




Disseram que ele voltou mais assuburbanado do que nunca, que da sua boca em êxtase convulsivo só sai o grito de “vai tremer, o chão vai tremer”. Pode dar a impressão do brado de guerra de um inesperado black bloc da crônica, um encapuzado tardio disposto a demolir o castelo de Rubem Braga. Negativo. “Vai tremer, o chão vai tremer” são os versos do fabuloso refrão do samba-enredo do Império da Tijuca, e um modo de quem anda na rua desejar Feliz 2014. São os votos do cronista que saúda o verão, reverencia a mulata faceira, a plebe inzoneira e se reapresenta ao batente. Ele voltou, esquisitão como sempre, chapéu de lado, tamanco arrastando, e cada vez mais apegado às suas idiossincrasias. Dorme com elas. De manhã, reverente, faz-lhes Nescau e escalda-pés. Como se fosse o moleque embaixo do sinal, está novamente em exposição pública, pronto para seu número único.

Pegar as palavrinhas e jogá-las para o alto, como bolas de tênis, sempre na torcida sincera de que ao caírem de volta na sua mão elas estejam abençoadas com o milagre de levarem sentido e diversão ao leitor.  Sem mais delongas, antes que isso vire show do Raul Longras, apertem os ossos e locupletem-se nestes lusos tremoços. Ele voltou, ninguém tasca ninguém fura o seu balão de Cascadura. O suburbano voltou novamente, partiu daqui tão contente e assim permanece. Foi ali na esquina procurar assunto, gastar sola de sapato e fugir da pauta preguiçosa que chega pelo Facebook. Num gesto de religiosidade pagã sugerido pelo terapeuta reichiano, mergulhou nas origens, as escadarias da Penha onde recebeu crisma e batismo. Enquanto lavava os degraus, ronronava o baião do Gonzaga, aquele do “Penha, Penha, vim aqui me ajoelhar”, aquele que depois se encerra com a rima traga paz para o meu lar. Tem dado certo. 

Disseram que ele voltou justo hoje porque é Dia dos Santos Reis, o dia que a canção do Tim Maia estabeleceu para serem levados os bodes, os bigodes e os sacodes da gente. É o dia de desmontar a árvore de Natal e remontar com carinho a árvore da crônica, o vale-tudo desta última página onde os jornalistas mais malucos são confinados, trancados dentre os finos fios gráficos e autorizados a queimar o Manual de Redação. Soltem a franga, conclama o editor. Cuspam no olho da Senhora Objetividade, convoca o redator. Aqui todos estão credenciados a escancarar os umbigos e, na medida do possível, torná-los histórias comuns a todos os demais umbigos universais. 

A crônica, de preferência sem todas essas rimas anteriores, funciona no jornal como a passagem dos Reis Magos para os fiéis do Tim. É a procissão encarregada de equilibrar na edição os bichos ruins trazidos nas outras páginas pelo noticiário de corrupções, desastres, crimes e afins. O cronista tange para longe os bodes-da-gente. Quer deixar na última página a impressão de que a vida pode ser pastoreada com mais leveza, um vento de lavanda no cangote e bom humor. Ele é o encarregado de mudar de conversa, descobrir outras palavras e, como na música dos velhos baianos, abrir a porta e a janela para que todos vejam o sol nascer. O Prêmio Esso é para os outros. Aqui é o espaço das desacontecências, onde as borboletas circulam entre os parágrafos e ninguém se deve levar muito a sério. Respira-se. Chamam de literatura de bermudas. 

Pois o cronista suburbano botou as suas e, como lhe é da espécie, saiu a flanar. Num domingo de setembro ele comeu vaca atolada na Feira das Yabás em Oswaldo Cruz, depois atravessou a linha do trem e entrou num teatro que já teve o nome de Zaquia Jorge. Estava escuro, mas não viu qualquer espectro da saudosa vedete suburbana, morta afogada na Barra da Tijuca. Pelo contrário. Teve a impressão alegre de já ter dançado ali um chá-chá-chá ao som da Orquestra do Silvio Mazzuca. Pode ser delírio, pode ser um ato público de regressão a vidas passadas. Nada vem ao caso, porém. Tudo aqui é permitido — e o cronista pede licença para derramar o primeiro gole do ano ao santo no pé da página, agradecido pela força da imaginação. 

E assim ele passou os dias, sempre imbuído de praticar a sua mais perfeita índole e convicção peripatética. Bater perna, correr fundo, soprar para longe o cisco do desespero do olho das amigas. Numa tarde de novembro o cronista foi ao Mercadão de Madureira. Pediu que chacoalhassem dentro do liquidificador a sua receita de caracu com ovo, casca inclusive, mais uma pitada de noz moscada e outra de simpatia, tudo na esperança de que isso hoje deflagre uma madeleine suburbana na memória de seus leitores. É o brinde de reencontro, um saúde a todos.

Numa noite de dezembro ele subiu o morro da Serrinha para escrever um livro sobre meninas da Zona Norte, e fez o que tinham ordenado na véspera. Antes de entrar na comunidade, piscou duas vezes os faróis para avisar aos olheiros do tráfico que vinha em missão de paz. Foi bem recebido. Decidiu então que uma crônica de Reis deveria ficar nesses mesmos limites de simplicidade e convenção cariocas. Chegar de mansinho, no sapatinho, para que o recado fique claro e nada além. Espantar os bodes de 2013, chamar de volta as borboletas e piscar para 2014 com os faróis das boas palavras.

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