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No dia em que eu conheci o ator Wilson Grey, o mais famoso bandido das chanchadas,
ele jogava na roleta clandestina que um bicheiro bancava num prédio da Rua Senador
Dantas. Parecia cena de seus filmes. O ambiente tosco, a fumaça dos cigarros,
uma aglomeração de desocupados gastando a grana e o tempo roubado do almoço.
Era a saleta de um mezanino fétido. Alguém poderia ser discretamente esfaqueado
num canto — e tudo ficaria na mesma. Era uma
bolha fora do tempo, fora da lei e do vai-e-vem da Cinelândia. Eu estava lá na
condição de desocupado, de vizinho do estabelecimento, pois a redação
funcionava no quarteirão seguinte. Foi no início dos 1970, quando os bicheiros
financiavam escolas de samba e havia um clima de tropicalismo-noir na contravenção.
Um dia tomei coragem, bati no ombro de Wilson Grey e disse que queria fazer
uma reportagem com ele. Ali. O homem fez cara de mau. Respondeu que me seria
todo falante e exclusivo se a roleta seguinte parasse no vermelho 21, onde havia
investido uma dúzia de merrecas. Topei. Eu nunca mais jogaria uma entrevista aos
humores de uma roleta. Perdi. Quer dizer, perdemos. Antes de sumir, como se eu
tivesse responsabilidade sobre as idiossincrasias da roleta, o bandido me
encarou com um ar de “você-está-com-os-dias-contados”.
No dia em que eu conheci Millôr Fernandes atravessei todo o salão da festa
para cumprimentar o grande pensador e humorista. Precisava agradecer o comentário
que ele havia publicado sobre meu último livro: “Joaquim, perito, sem
confundir, em misturar alhos com bugalhos, já que as duas coisas são a mesma”.
Millôr, perito em confundir, já que este é um dom da inteligência, deu um
sorriso enigmático quando eu o cumprimentei. Em seguida, me misturou na cabeça
os alhos com os bugalhos da insegurança: “Ah, você gostou?!” — e simulou,
divertido, um ar de que não era exatamente para tanto.
No dia em que conheci a atriz Norma Bengell, eu não estava imbuído de
qualquer pauta. Era apenas um encontro fortuito numa cantina do Leme, mas eu
precisava narrar como uma frase sua, perdida em meio a uma entrevista, virara bordão
nas redações. Bengell tinha dado a entrevista a uma repórter muito bonita.
Disse-lhe que durante uma filmagem visitara uma tribo na Amazônia onde os índios
eram todos “bi como nós”. A repórter engoliu em seco. Ficou com vergonha de
aprofundar a história e, em linguagem de branco, devolver com um “nós quem, cara
pálida?”. Achou melhor calar a dúvida. A bela repórter, no entanto, contou na
redação — e desde então um grupo de jornalistas, quando está a fim de diversão
e sacanagem, emprega nas suas conversas o “bi como nós”. Norma não lembrava
mais da história. Riu muito quando contei, e lançou a suspeita sobre si mesma: “Xi,
acho que era cantada!”.
No dia em que eu conheci Ibrahim Sued, o “turco” estava mais agitado do
que nunca, pois casaria ao fim daquela semana a sua única filha. O colunista
era um homem de impressionante capacidade para a busca da notícia, foi um
reformulador do conteúdo do noticiário social, mas deixava a desejar pela
sofisticação intelectual. Amigos o chamavam de “sentimentalmente grosso”. No
tal dia em que o conheci, Ibrahim usou da sinceridade costumeira. Disse ter
tido uma conversa franca com a filha, mas sem aconselhamentos maiores. Ele próprio
acabara de sair de um divórcio, sabia da dificuldade do projeto conjugal. Não
tinha certeza de nada, por isso poupou a moça de falsas sabedorias. Ibrahim me
disse ter cravado apenas uma recomendação. Que a filha jamais fosse ao banheiro
de porta aberta. Por mais íntimo que já estivesse o casamento, por mais que o
casal já tivesse feito tudo na cama — Ibrahim me repetia o aconselhamento — uma
mulher ao ir à privada deveria fechar a porta aos olhos do marido. Não sei se a
moça seguiu as instruções. O casamento infelizmente acabou uma década depois.
No dia em que eu conheci Angela Ro Ro ela estava do outro lado do telefone
e pedia, por caridade e urgência, que fosse até seu apartamento. O açougueiro
da rua estava se dirigindo para lá, empunhando seu facão de labor, para
resolver uma pendenga com ela. Ro Ro já tinha me acionado para algo aparecido meses
antes. Era uma confusa história envolvendo um vizinho de porta, um papo que roçava
em preconceito contra homossexuais e afins. Desta vez era o açougueiro. Pela
manhã, ao levar a carne ao seu apartamento, o homem se desentendera com um
amigo negro dela. Ro Ro pedia a presença da imprensa a fim de evitar a abertura
de uma lacuna profunda na música brasileira. Cantora dos grandes dramas
modernos, ao telefone, sem o piano para acompanhar, não passava tanta convicção.
Eu pedi que Ro Ro me ligasse quando o futuro assassino se apresentasse à sua
porta com a pavorosa arma do crime. Deu certo. Nunca mais nos falamos. Graças a
Deus a grande cantora continua viva.
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