Myrian e Rubem – Final (28/10/2014)


 Tem um tipo de homem que gosta de se exibir para uma mulher mostrando os músculos estourando camiseta a fora. Outro tipo, e era o caso de Rubem Braga nas cartas para Myrian Rezende Costa, se faz de frágil. Aposta que a mulher não agüenta encarar mais um fortudo, principalmente se este, na tentativa de melhorar a caricatura, se enverniza com a gravidade macha de que sabe tudo.
“Estou bastante burro hoje, passei a manhã discutindo fretes e câmbios”, escreveu o cronista no dia 21 de outubro de 1955, naquele momento trabalhando como adido comercial da embaixada brasileira no Chile.
Cronistas são seres curiosos, exibicionistas pelo avesso. Maltratam-se na apresentação da falta de qualidades, como se estivessem na vida apenas com a missão de flanar ao léu. Procuram, no entanto, demonstrar isso com um charme tão particular que ao fim da apresentação, feita à base apenas de palavras, pontos e vírgulas, a mulher desejada o veja louro, alto e de olhos azuis.
Tenha cuidado com eles.
Antonio Maria, outro cronista feioso, dizia precisar de três horas de conversa com uma moça para que ela esquecesse a sua cara e passasse a ter alguma chance.
Rubem Braga foi o grande mestre deste redesenho de imagem pela palavra, como prova a preciosa coleção de 17 cartas que me foi presenteada pela própria Myrian e breve se juntará ao acervo dele na Casa de Ruy Barbosa. Numa outra carta, a respeito de mais uma falsa ignorância, Rubem reforçaria a autodepreciação: “Coisas de burrinho, como sou. Mas não espalhe este segredo terrível, pois vivo da minha fama de inteligente”.
São 17 textos inéditos de um escritor que só se sentou frente à máquina por dois motivos. No primeiro, era pressionado pela sobrevivência e o estalar cruel do chicote de algum editor. Tudo em seguida foi publicado num jornal, revista ou livro. No segundo caso, movia-o a necessidade de, com a graça galante de suas frases falsamente desleixadas, ficar bem diante de uma mulher. Antonio Maria seduzia na conversa; Rubem, por escrito. É o caso da coleção de cartas para Myrian, uma preciosidade que por isso merece este segundo capítulo.
“Recebi meu carro da importadora Wal”, escreveu em primeiro de junho. “Andei 1.300 quilômetros, quebrei o para-brisa e aguardo conserto. Vou sair de minha casa no fim de junho e quero saber se você vem e quando, porque positivamente é por você – e não pelo ministro do Trabalho nem pelo sr. Madureira (proprietário deste prédio da Calle dr. Roberto Del Rio 1751) nem pelo chefe de oficina da Wal – que devo regular minha existência.”
Se houve ou se não houve alguma coisa entre eles dois ninguém pode até hoje afirmar. Myrian diz que não. Rubem tinha esperança. Em 15 de fevereiro, anuncia uma namorada – com o cuidado de dizer ao final, com graça irresistível, que breve estará solto:
“Tenho uma namorada extremamente bonita, todos me invejam, mas é tão grande que me dá preguiça. Outro dia fui com ela a um bar e ela estava de saltos altos. Flávio de Aquino ao nos ver disse que eu estava ‘fazendo de Toulouse Lautrec’. Não creio que dure muito”.
Definitivamente, ele esperava por Myrian. Numa carta de 19 de agosto, dava a impressão de que apenas passava o tempo:
“Não tenho aqui nenhum amor, apenas aventurinhas sem conseqüência. Coisas físicas que acabam me fazendo muito mal à bursite”.
Jessica Rabbit, a coelha mais gostosa do cinema, abusava da sinceridade quando perguntada sobre por que se apaixonara por Roger, o coelho feio e desajeitado: “É porque ele me faz rir”. Nas 17 cartas que escreveu para Myrian, um dos brotos mais cobiçados de Copacabana na década de 1950, Rubem fascinava-a pela mesma e irresistível qualidade. O homem tinha humor, esse topete irresistível.
“Vou comprar um carro mais barato, com certeza um Volkswagen”, disse em outra carta. “Os amigos preveem que morrerei contra um poste, embriagado, no albor da madrugada, o que não chega a ser glorioso, mas também não é a pior morte”.
Era difícil manter a chama acesa e ficar vivo na memória do outro. Ele no Chile, ela, em Nova York. Rubem precisava encher a caneta de tinta, jogar palavras num papel, colocar dentro de um envelope, fechar com goma arábica, ir até o posto dos correios, comprar selos, passar a língua no costado deles para ativar a cola, e despachar por avião. Em seguida, cruzava os dedos para que todas aquelas palavras de estima, consideração e esperança chegassem às mãos, aos olhos e ao coração da pessoa querida.
Este artefato de afeto chamava-se carta. Graças à sua permanência, livre do “delete” instantâneo e da redação vulgar do email, está aqui para contar a bela história – de amor ou de amizade, não importa –, de um homem e uma mulher.
“Oriente-me na vida”, suplicou Rubem para Myrian no final daquela carta de junho, “pois dela não sei nada”.

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