Ringo, como se não lhe bastasse a sorte de ter entrado na banda na semana em que ela se consagraria, sobreviveu ao rock and roll
O meu primeiro impulso foi lhe bater nas costas e perguntar por que ele tinha topado gravar como cantor — será que não percebera o presente de grego? — as piores músicas compostas por Lennon e McCartney? Mas logo refreei o impulso de fazer jornalismo numa hora daquelas.Era Ringo Starr em carne e osso, um nariz agora não tão pontiagudo como na juventude, um tanto encarquilhado em direção aos pés da lei da gravidade. Era ele, o baterista que entrou para a História por não tirar onda de grande músico e preferir deixar essas vaidades para a banda.
Ele apenas batia o bumbo, e os outros que tratassem dos assuntos ligados à genialidade. Era a combinação. Cada qual no seu cada qual, o resto entrava como lucro.
Bateristas não encucam. Compreendem que alguém precisa deixar a casa em ordem, o tapete esticado, para que os outros não tropecem nas mixarias da existência e possam botar o gênio na mesa. Ringo carregava o piano. Hoje, se sua obra aparecesse na capa de alguma revista, não seria na “Caras”, mas na “Vida Simples”. Título: “Para que mais?”.
Sua baqueta não tinha nada a ver com os pincéis do Picasso ou a caneta do Gay Talese. Gostava do básico, essa delícia fina. Foi ele o cara das viradas secas nos pratos da bateria. Deixou todos eles limpos, pagou o IPTU da banda e cuidou do bom ritmo das coisas. Fez as compras do mês para Lennon, McCartney e Harrison lá na frente tratarem do resto, e transformarem a História da música. Não é pouca sabedoria.
Pois era Ringo Starr em pessoa quem estava ali, a poucos metros, dentro do hotel carioca onde ficou dois dias e só saiu para ir na esquina apresentar o mesmo show de sempre, aquele que no dia seguinte seria ironizado pelos críticos de sempre, todos rindo de sua mania de passar a noite esticando os dedos para a plateia num extemporâneo desejo de paz e amor. Ninguém perdoa a sua sobrevivência. Sob qualquer pretexto, querem atirar no baterista e lembrar o seu papel de coadjuvante da história.
Keith Moon, no The Who, e John Bonham, no Led Zeppelin, eram mais bem equipados, mais loucos e tiveram a glória pop de morrerem cedo, cada um mergulhado no seu coquetel particular de drogas. Ringo, como se não lhe bastasse a sorte de ter entrado na banda na semana em que ela se consagraria, sobreviveu ao rock and roll. Para os críticos da matéria, isso é ofensa pessoal.
Ele não levou um tiro no peito na porta do Dakota, como Lennon; não se deu um tiro de fuzil na cabeça, como Kurt Cobain; não encalacrou no vômito, como Hendrix; e nem está no cemitério de Père-Lacheise, ao lado de Jim Morrison — todos confirmando a lenda de que bandido bom, digo, roqueiro bom é roqueiro morto.
Ringo Starr podia ainda ter sido empurrado na piscina pelos outros Beatles numa repetição do que os outros Stones teriam feito com o Brian Jones, mas, para a decepção dos que só enaltecem os perdedores, ele não só está vivo como toca no Rio de Janeiro. Quando eu o vi, olhava a vitrine de joias do hotel carioca onde se instalou.
Eu pensei em perguntar, de narigudo para narigudo, por que, em meio a tantas pepitas, os chefes da banda, Lennon e McCartney, só lhe deram para gravar bois com abóbora como “I wanna be your man”, certamente uma das cinco músicas da dupla que poderiam receber a tarja de ruins (as outras são “Tell me what you see”, “Yes, it is”, “Sun king” e “Dig a pony”)?
“Good night”, do álbum branco, era uma lullaby que só muitos anos depois ficaria reconhecível como tal, na voz apropriadamente doce e sussurrada de Linda Ronstadt. Com Ringo, a música mantinha não só acordada como sobressaltada qualquer pessoa que, na busca do sono profundo, estivesse sendo embalada com ela.
“With a little help from my friends” e “Yellow submarine”, os grandes sucessos dos Beatles cantados por Ringo, eram duas canções infantis doidonas (“O que você vê quando apaga a luz?”, perguntava a primeira). Foram parar na boca do baterista porque não tinham nada a ver com o grupo, e precisavam de uma voz estranha para sublinhar que Lennon e McCartney sabiam disso. Anos mais tarde, Joe Cocker reinventaria “With a little help”, criando uma canção que nem seus compositores imaginavam — mas isso já é outra história.
Naquele dia, no fim de fevereiro, eu estava passando pelo lobby do hotel e quando vi o cantor-baterista dando sopa, distante dos seguranças, pensei em meter o nariz onde não era chamado. Puxar esse papo de beatlemaníaco. Achei melhor não, e fui em frente. Deixei Ringo no céu de sua vitrine com diamantes.
A minha opinião sobre as músicas era o de menos. Ele devia ser grato a Lennon e Macca por lhe terem dado o que fosse para cantar — e os acordes de “If you’ve got trouble”, do “Anthology 2”, a sexta música ruim da dupla, também gravada por Ringo, começaram a tocar na minha cabeça. Há sempre quem goste. Se cada um pode ver o que quiser quando apaga a luz, imagina o que sempre se poderá enxergar debaixo das canções eternamente acesas dos Beatles.
(Crônica publicada originalmente em "O Globo")
Comentários
Postar um comentário