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Foto deRicardo Moraes/Reuters |
Acorda, Maria Bonita, que hoje é
o primeiro dia do resto dos seus 450 anos e é preciso tomar vergonha na cara. Cair
na real. É preciso parar com essa história de que tu és divina e graciosa,
estátua majestosa por Deus esculturada. Por causa disso, deitada nos louros da
babação de ovo, se deixas displicentemente embarangar, como se o jogo estivesse
ganho. Menos, neguinha, bem menos.
Hoje é o primeiro dia do resto de
sua vida. O Waldir Amaral já anunciou angustiado que “o relógio maaaarca” e é
preciso ser grosso para te mexer nos brios. Acorda pra cuspir.
Levanta, nega manhosa, deixa de
ser preguiçosa e vai procurar o que fazer com o Largo do Boticário. Qualquer
dia desses aquele casario de real valor vai desmoronar na cabeça dos turistas e
descer como lama pelo Rio Carioca, este outro coitado que nos deu nome e hoje é
só uma vala escorrendo nojenta por baixo de Laranjeiras. Faz o teu, cidade
mulher da música do Noel, e deixa de pose. Para de reclamar do preconceito
contra a tua alma e curvas femininas, ajeita a saia entre as penas e faz o que
te é da índole e necessidade. Arruma a casa pros teus filhos.
Mexe com essas banhas saturadas,
450 anos de omelete de presunto do Paladino, outros tantos de miolo frito do
Cervantes, um banquete regado a Caracu com ovo, com casca e tudo, no “seu”
Joaquim da esquina. É uma combinação parecida com a que Tom Jobim via em Nova
York. A cidade era boa, mas uma merda para se viver.
Melhora o shape desses estragos,
corrige as tuas ruas esburacadas, celulites que ali na esquina de Figueiredo
Magalhães com Nossa Senhora mais parecem as crateras da lua. Liga na Rádio Relógio,
bem no cantinho do dial e sente o drama. O locutor vai dizer o slogan “Depois do
sol quem ilumina seu lar é a Galeria Silvestre” e dar a hora real: o trem está
atrasado ou já passou.
Corre contra o prejuízo, contra o
tempo perdido olhando a garota que vem e que passa, e sobe feito um cabrito doido
os 215 degraus da escada do Selaron, na Joaquim Silva. Depois percorre Santa
Teresa pela Almirante Alexandrino, desce pela Rua Alice e pergunta aos fantasmas
da Casa Rosa, de preferência ao da proprietária, Dona Lily, se é verdade a
história de que o arcebispo aparecia por lá para ouvir, debaixo da cama, o que
ia de pecado no corpo da Humanidade em cima. Tente saber se tem algum pecado
novo e me conta em off, num email de uma linha, curto e grosso, porque Millôr
Fernandes já me assopra aqui ao ouvido: o tempo ruge, leãozinho.
Do Leme ao Pontal está tudo
igual, uma esculhambação de despropósitos que não tem nada a ver com a fantasia
do cartão postal que vendem nas bancas. Desce do salto alto, Maria Madalena dos
Anzóis Pereira, e esquece essa história de que teu beijo tem aroma de botão de
laranjeira. Passadismo. Nostalgia. Era só uma história do Pedro Caetano e do
Ciro Monteiro para obter favores nas carnes da tua pseudo-inocência.
Conseguiram, depois te deram o popular pé na bunda. A história de sempre.
Teu perfume nas ruas agora é
outro, Rio de Janeiro, e a culpa não é mais apenas do Mangue, do Curtume Carioca,
da fábrica do Sabão Português ou do “peidinho do Brizola”, no Posto 5. Cheira mal.
Nem toda a flor da noite no alto da Maria Angélica, nem todos esses
cartõezinhos que as garotas do Boticário distribuem na porta das lojas dariam
jeito. Nada que não o suor do trabalho nos perfumará.
Um vereador deve apresentar nos
próximos dias um projeto de instalação de ventiladores gigantes na orla para
que eles assoprem por toda a cidade, até os rincões mais profundos, o perfume
da maresia, abafando o mau cheiro insuportável do descaso municipal e do mijão
de carnaval. É. Pode ser. Mas a notícia carece de confirmação.
E assim se passaram 450 anos de
arrogância absoluta, o Cristo Redentor descendo de seus domínios celestiais
para assinar, de braços abertos no alto de uma pedra, a autoria orgulhosa
desses recortes nas praias, das curvas das montanhas e mais a floresta tropical
na calçada das casas. A cidade mais bonita do mundo, as mulheres idem, o
carnaval, o estádio, e outras lullabies perfeitas para embalar o berço
esplêndido das nossas vaidades. No país do “me-engana-que-eu-gosto”, colou, e,
assim como a charanga do Jaime e o gavião comendo os pombos no relógio da
Mesbla, tudo foi bom e deliciosamente folclórico enquanto durou.
Aos primeiros segundos do resto
dos próximos 450 anos é hora de se olhar no espelho cru comprado a prestações
na Amoedo e fazer uma investigação Lava-Jato do que ficou. Sem maquiar, sem
pintar os barracos do Dona Marta como fizeram para a Elizabeth II passar em
1968. Deixar de ver a vida com os filtros do Instagram e, caraca, caracole,
pegar o touro a unha. Baixar a bola. Reconhecer que ainda dá um caldo, borogodó
é mato, mas os implantes são necessários por todos os cantos desta boca
banguela.
Acorda, Etelvina, e corre aqui
depressa. O buraco é mais embaixo do que aquele do VLT na Rio Branco. Que pelo
menos no fundo deste se encontre a fórmula perdida do refresco de coco do
Simpatia, servido ali na esquina com a Rua do Rosário – e que o elixir das
melindrosas e dos almofadinhas reinstale no futuro das ruas a glória civilizada
da Cidade Maravilhosa.
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