Aí a Marilia Gabriela se debruçou como lhe é de estilo sobre a mesa do programa de entrevistas. Era o momento que eu mais temia. De casa, como espectador, já tinha percebido que aquele gestual de Gabi, uma atriz e jornalista da pesada, era a caneta vermelha com que ela sublinha visualmente a cena de maior carga dramática de suas notáveis entrevistas na televisão. Dessa vez eu era o entrevistado. Tremi discreto, apenas com o cantinho do pâncreas, certo de que câmeras e microfones não alcançariam o deslocamento das minhas placas tectônicas. Lembrei que devia ter mandado Detefon em meu lugar, lembrei que lugar quente é na cama ou então no Bola Preta. Tarde demais. Estava num estúdio congelado em São Paulo. A boca seca, de pavor sincero, me dava a sensação de portar beiçolas tão botocadas quanto as da Angelie Jolie. “Perdi, perdi”, eu podia ver essa declaração de fracasso passando na minha testa como se fosse um letreiro de notícias em Times Square. Era aquela hora decisiva em que os homens se separam dos meninos. A hora em que a maior entrevistadora da TV mistura pergunta crua com técnica de atriz dramática. Ela se debruça sobre a mesa e anuncia a milhares de espectadores em volta da arena que, olé, chegou a hora de cravar a espada fina no cangote desse touro acuado.
O touro era eu.
Foi aí que Gabi olhou
intensamente verde no fundo da menina cansada dos meus óculos castanhos e,
antes que eu registrasse o pensamento interior de migo para comigo mesmo –
antes que eu me murmurasse ´caraca! como essa mulher é bonita vista assim tão
de perto’ –, foi aí que Gabi, com aquele texto curto dos grandes mestres das
entrevistas, ao mesmo tempo que um fado triste começou a cantar na minha cabeça
dizendo que “olhos verdes são traição/ são cruéis como punhais” – foi aí que
ela me mandou a pergunta de chofre na lata das orelhas:
“Joaquim, como você convive com a
solidão?”
Eu sou um jornalista. Apenas um
desses sujeitos estressados que passam a vida inteira no bar, com uma peninha hollywoodiana
no chapéu, mendigando novidades. Um cara viciado na técnica fria de expor com
objetividade, sem envolvimento, os fatos, as cenas e as opiniões passadas com
os outros. Sejamos lusitanamente simples. Esse cacoete profissional, sempre de
olho no lance externo, no pão-pão queijo-queijo da existência, faz com que as
vaguitudes internas da própria emoção nunca sejam confessadas. Solidão? Eu?
Como assim? Além do mais, se o poeta falava do ferro nas montanhas de Minas
para explicar o perfil duro de suas sensações sob controle, eu costumo lembrar
que uma certa pedreira nos subúrbios da minha infância também deve ter feito
seus estragos. “Um coração de pedra”, acusava uma ex-namorada. Boa moça. Eu não
diria que estivesse errada.
Gabi esperou. Ali pertinho, no
exame rápido de suas pupilas dilatadas pela tensão do jogo, eu senti que Gabi
gostaria, e eu só posso lhe ser ainda mais agradecido por tamanha confiança
intelectual, de receber como resposta uma crônica ao vivo de cinco mil
caracteres sem espaço. Afinal, ela me sabia biógrafo de Antonio Maria, o craque
existencialista que definiu a solidão como aquele momento em que o coração, se
não está vazio, sobra lugar que não acaba mais. Maria era um poeta. Escrevia de
vez em quando jornalisticamente sobre o que se passava na noite do Rio, seus
shows e restaurantes. Mas tornava-se grande mesmo quando expunha as entranhas
no papel e sapateava sem pudor, bandeiroso, ninguém lhe amava, ninguém lhe
queria, sobre o que lhe machucava a alma. Não por acaso morreu do coração. Não
por acaso sua última palavra publicada foi “solidão”. Não por acaso nada disso
é o caso desse sujeito que se começou a narrar lá no início, o touro perguntado
por Gabi como administrava a sua.
Um cronista de segunda-feira, e
tem que haver alguma vantagem ao se entrar num negócio desses, é um fingidor.
Pode até inventar uma solidão que não existe, mas tem tempo para a tarefa e
ninguém está vendo como ela se constrói na tela do computador. Ganha a vida
inventando assunto. O resto do jornal já está impregnado demais de realidade. A
crônica é a hora em que o editor encarrega o maluco de descobrir uma pasárgada
qualquer, uma maracangalha outrossim, mas tudo, pelo amor de Deus!, bem longe
dos hospitais e da violência do Rio. É a hora da Redação e o Leitor respirarem
aliviados. O cronista deforma as cenas ao gosto da pena e fica por isso mesmo.
O ombudsman, nem aí, dá força na mágica. Nenhum manual de redação o obriga à
coerência. Machão rubro-negro ontem, homem sensível hoje. Nada é obrigatório,
nada precisa lhe correr na alma exatamente como pôs no papel.
Um programa de entrevistas de TV
é justo o contrário. É vida real em estado bruto – embora seja uma
indelicadeza, e desde já me desculpo, a aparição de uma palavra dessas numa
frase em que ao final vem o nome e a flor de Marilia Gabriela.
Senti o dedo do operador de
câmera fechando o foco sobre a solidão da menina dos meus óculos e a
necessidade urgente, provocada pela pergunta e pelo show televisivo, de que eu
e a tal menina ficássemos com os sentimentos nus. Foi aí que o “perdi, perdi”
voltou a passar pelo telão da testa. Eu devia ter pedido um dó maior ao
regional do Caçulinha, mais retorno ao técnico de som do estúdio e atacado,
dando o crédito a Paulinho da Viola, de “Solidão é lava/ que cobre tudo/
amargura em minha boca/ sorri seus dentes de chumbo”. Diria ao final que é tudo
que sei sobre o assunto. Mas só em espiritismo se tem tanta presença de
espírito. Lamentei por antecipação que o ibope vá despencar quando o programa
for exibido, mas respondi o que me estava ao alcance, alguma desinteressência
tipo “aplaco a solidão fugindo para uma quadra de tênis e exercito o backhand”.
Ridículo, mas fazer o quê?
Pode ter sido a pedreira
suburbana, timidez, falta de jeito. Desculpe, Gabi, não foi por mal. Um
cronista só fica à vontade, e tira a roupa, quando está no jornal.
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