Humildificador
Homenagem ao leitor que
esculhamba
Senta que lá vem história.
Na primeira delas vamos encontrar
o lamentável marechal Costa e Silva visitando as instalações do “Jornal do
Brasil” na Av. Rio Branco. A ciceroneá-lo a muy digna proprietária do
estabelecimento, a Condessa Pereira Carneiro. Ao se aproximar o fim do tour,
ela informa ao presidente que no dia seguinte o JB noticiaria a visita em suas
páginas.
O segundo chefe da ditadura
militar, com a elegância que caracterizava a classe, quis saber mais:
“Vai ter elogio?”
A condessa, constrangida com a
cara-de-pau do cara, informou-lhe, com jeitinho, que, hum, bem, não haveria.
Seria feita uma reportagem sem comentários, objetiva, como é da boa norma
jornalística, da passagem do presidente pela casa.
O marechal foi-lhe sincero:
“Desse jeito não precisa não,
condessa. Eu gosto mesmo é de elogio”.
Na segunda história vamos
encontrar entrando numa festa o diretor Daniel Filho, um currículo enorme de
grandes realizações na TV brasileira. Daniel cumprimenta uns e outros, até que
chega no grupo em que um conviva está cercado de barbudos e cabeludos por todos
os lados. Ao mesmo tempo que apaertaa mão do diretor, o sujeito vira-se para a
roda. A pretextode de apresentação, anuncia:
“Pessoal, esse é o Daniel Filho”.
E depois de fazer uma pausa
enfática para que todos anotassem bem a que tipo de gente o recém-chegado
pertencia, foi em frente na apresentação:
“Ele adora um sucesso”.
Continue sentado porque lá vem
mais história.
Sucesso e elogio são dois dos
mais lindos bálsamos semânticos da língua e eu sugeriria, a esses deputados
sempre em busca de algo desnecessário a se apresentar como projeto de lei, que
fosse instituída uma “Bandeira Brasileira do Bom Profissional”. O mesmo
retângulo verde, o mesmo losango amarelo e a bolota azul. Sairia apenas o
“Ordem e Progresso” da faixa entre as estrelas para dar lugar ao “Sucesso e
Elogio”.
Eu gostaria de provar dos dois,
quem não? Qualquer caixa do Bradesco ou cientista de Manguinhos está em busca
dessas delícias perigosas. No Brasil, sucesso é ofensa pessoal. Elogio, em
qualquer parte do mundo, nunca satisfaz a nossa enorme fome de reconhecimento.
Elogio-e-sucesso, como a banana da música do Braguinha, engorda e faz crescer.
Os Ronaldinhos ficaram mais bonitos depois, é ou não é? Mas leia a bula. Há
efeitos colaterais desagradáveis da ingestão sem cuidado daquelas bananas.
Uma antiga namorada diria que eu
não passo disso, frankstein leonino surgido do cruzamento do Costa e Silva com
o Daniel Filho. Desacordo. Ela não sabe, por mais boa moça que seja, coitada,
que um jornalista tem no conteúdo da sua caixa postal diária um cirurgião
plástico eficiente para lhe corrigir na cara e na alma as monstruosidades que
sucesso e elogio podem fazer ao perfil e ego. Não uso Pond´s. Ao bisturi do
Pitanguy também nunca fui acertar problemas de máscara comportamental. Para
manchas e espinhas do caráter uso o santo remédio – o e-mail do leitor que não
gosta. Do leitor que não te acha essa Coca-Cola toda. Que denúncia a pobreza
das tuas vírgulas. É o mais fantástico corretor facial existente no mercado.
Tenho dúzias de e-mails desse
tipo arquivados, e sei que novos chegarão hoje. “Quanta falta de assunto”,
dizem sempre. Guardo com especial carinho aquele que já nas primeiras horas de
uma manhã de segunda-feira abria os trabalhos da minha correspondência. O
leitor tinha acabado de sobreviver ao embate com não sei mais que crônica neste
espaço. Foi curto e grosso na opinião: “Ai que saudade do Rubem Braga. Desiste,
cara”. Um bom-dia desses, desde que cheguem outros na direção oposta, deixa
qualquer um no seu tamanho exato. Nem isso nem aquilo. Nem um centímetro a mais
ou a menos dos bons companheiros dispersos pelo resto da humanidade. Dá
equilíbrio. Tira o salto.
“Eu moro em Niterói, faço crônica
para um site da Califórnia e sei como é”, disse outro leitor numa segunda
dessas. “A inspiração não veio hoje, né?”.
O jornalismo diário, com sua
enorme possibilidade de erro e a espetacular exibição pública desses fracassos,
os mais discretos deles transformados imediatamente em e-mails esculhambatórios
ao seu responsável, no caso este que vos digita, é a minha versão particular do
“humildificador”. Trata-se de um “aparelho virtual” patenteado pelo
psicanalista Francisco Daudt. A engenhoca ativa uma área cerebral que costuma
ficar sem uso: a noção da nossa própria desimportância. Ao longo do dia, o
humildificador sussurra nas orelhas do seu portador um mantra básico para
cortar qualquer possível efeito alérgico da ingestão da droga moderno do
elogio-e-sucesso. “Menos,
bicho, menos.”
Se o papa morre, você, então, nem
se fala. Pega leve.
Uma crônica dessas vai ter daqui
a pouco o mesmo merecido fim de todo o resto do jornal. O embrulho do peixe, o
forro da gaiola do passarinho, o recheio para uma bola de meia no subúrbio.
Leve-se menos a sério.
Rhett Butler, grande filósofo do
século passado, estava certo quando olhou nos olhos da câmera de “... E o vento
levou” e mandou outra das frases preferidas do meu humildificador:
“Francamente, querida, eu não estou nem aí para isso tudo”.
Agora senta que lá vem a última
história.
Séculos atrás, na TV Continental,
canal 9, do Rio de Janeiro, Fernando Lobo entrevistava alguém cheio das
importâncias.
Entrevistado:
“Bem, Fernando, eu não sei se eu
posso responder a sua pergunta aqui na televisão.”
Fernando:
“Ah, claro que sim. Fala aí.
Ninguém assiste a esse programa mesmo...”
Fernando Lobo já usava, compre o
seu. O humildificador está à venda nas boas casas do ramo. Instale hoje mesmo e
viva a delícia feliz da nossa humana desimportância.
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