Senhores doutores do Dicionário
Houaiss Ilustrado de Música Popular Brasileira, venho por meio desta mui
respeitosamente agradecer a inclusão de meu modesto nome, apenas um crítico
eventual de MPB, entre seus 5.322 verbetes geniais. É muita gentileza para tão
poucos méritos. As 12 linhas a que fiz jus me honram, enchem de brio e dão
satisfação por me cravarem no mesmo espaço físico de Geraldo Pereira, Torquato
Neto, Carlos Lyra, Getúlio Cortes, Vassourinha e Jackson do Pandeiro, gente que
me ajudou a cruzar esse já longo vale de lágrimas com alguma satisfação. Todas
as informações contidas sobre a minha carreira profissional estão corretas. Os
livros que publiquei são aqueles mesmos especificados, assim como os órgãos de
imprensa em que trabalhei. Obrigado. O que venho por meio desta reclamar –
mandando desde já um terno beijo na fronte baiana do Ricardo Cravo Albin,
criador dedicado e supervisor geral do belíssimo dicionário – é que a exatidão
dos dados sobre a minha trajetória profissional lamentavelmente não se repete
quando trata do aspecto pessoal. O jornalista registrado é este mesmo que vos
fala. Editor disso, repórter daquilo, colunista de amenidades, um currículo
magro de êxitos. Está tudo lá. O cidadão, no entanto, é outro. Aquele Joaquim
não sou eu. Nasci no Rio de Janeiro, no subúrbio da Vila da Penha, uma bola de
meia encravada entre Brás de Pina e Irajá, uma bola de gude no cotovelo de
Vicente de Carvalho. Eu imagino que seja ótimo vir ao mundo em Florianópolis.
Viver embaixo da figueira da Praça XV, cruzar todo dia a portentosa ponte
Hercílio Luz e sonhar casar com uma daquelas louras de dois metros de altura
que vem e que passa na praia da Armação. Tudo isso deve ser extraordinário, não
ponho qualquer dúvida nem ponto de ironia nessa afirmação. Não dá para discutir
com um Estado capaz de gerar frutos como Guga e Vera Fischer. No entanto,
queridos amigos do Dicionário Houaiss, preciso ser honesto com a verdade dos
fatos. Não me foi dada pelo Criador tamanha honra de origem. Diferentemente do
que está escrito na primeira linha da pequena biografia de 12 linhas que me
eterniza ao lado dos nomes fulgurantes da MPB, eu não sou de Santa Catarina.
Não nasci em Florianópolis. Sequer um dia cruzei suas ruas bem asfaltadas, não
lhe provei também do ar e, snif, muito menos das arianas gigantes. Vim ao mundo
num balão japonês que caiu ali na rua Tejupá, uma transversal da estrada do
Quitungo, num dia de agosto em que, se lembro bem, se fez efeito sobre a
memória o óleo de fígado de bacalhau que tomei na pia batismal do Mello Tênis
Clube, o Risadinha cantava num circo instalado logo em frente, na esquina com
Honório Pimentel. Tudo isso numa Vila da Penha ainda quase rural, onde as
famílias comiam no arroz as rãs que seus moleques pegavam em algum charco
local. Ter nascido em Florianópolis me traria um par de olhos verdes no meio do
rosto, uns cabelos louros caindo finos sobre a testa e um som menos chiado
saindo da boca. A pele vibraria aquele rubor de saúde entre as bochechas
leitosas e, tratada sob um sol menos ruidoso, daria arte final bem mais
razoável ao visual que se apresenta hoje. O três por quatro sairia melhor mas,
nascido em Santa Catarina como quer o Dicionário, eu não teria visto o céu
suburbano coalhado de balões quando o Brasil ganhou a Copa em 1958. Não teria
visto o bicheiro Peruinha jogando notas de um cruzeiro para a molecada que
acompanhava seu conversível. E muito menos passaria chapado as tardes de sábado
ouvindo os concursos de mímica no Hoje é dia de rock da Rádio Mayrink Veiga.
Definitivamente eu seria um outro, com todas as armadilhas freudianas que isso
costuma acarretar. Eu seria um Joaquim Ferreira dos Santos que não teria visto
a Império Serrano desfilar terça-feira de carnaval no Largo de Vaz Lobo, não
teria subido na roda gigante do parque Xangai na festa da Penha, não teria
assobiado fiu-fiu diante o desfile das normalistas do Carmela Dutra em
Madureira – e, sabe-se lá, que tipo de ser humano surgiria moldado com os
mesmos genes em outro contexto e dez graus a menos na temperatura. Melhor,
senhores Houaiss, que eu fique aqui onde sempre estive: jogando meu bafo-bafo,
pulando minha carniça e passando sebo na bola de couro número cinco. Não preciso
de mais. De vez em quando passa o vendedor de puxa-puxa. Quando volto da
padaria, venho comendo o bico do pão. O resto é Monteiro Lobato de manhã,
Falcão Negro de tarde e o mocotó da Rose Rondelli me embalando o sono junto com
o apito do guarda noturno. Toda essa felicidade posta aqui neste desabafo
carinhoso, peço então, queridos doutores do dicionário, que na próxima edição
me coloquem de novo no berço da manjedoura inicial: no coreto do Largo do
Bicão, se possível cantando o “Bigorrilho”. Sem mágoa. Fomos vítimas de uma
praga moderna, a informação que se joga de qualquer jeito na internet e,
passada adiante, vai ganhando ares de verdade. Foi o que aconteceu. Há mais de
um ano eu já tinha visto um site que me perfilava como catarinense. Calei. Como
não me ofendia a honra, achei desnecessário reclamar a perda da nacionalidade.
Eis que agora, snif, a informação equivocada se propaga e me atrapalha a glória
eterna ao constar como verdade do verbete de enciclopédia. A Vila da Penha,
terra de Romário e do capitão Carlos Alberto, já tem o ego satisfeito de
referências nobres. Tenho certeza que dispensaria o conserto. Eu, no entanto,
carente de maiores orgulhos, sou grato desde já se retificarem na próxima
edição. Beijos em todos aí no dicionário do Houaiss, meus mais sinceros
respeitos pelo belo trabalho. Mas, por favor, quero minha suburbanice de volta.
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