Minha entrevista com Roberto Carlos

 


Eu era jovem o suficiente para achar que sabia de tudo e foi aí, em março de 1976, abusando desse desperdício que é deixar a juventude nas mãos dos jovens, foi aí que eu virei para o Roberto Carlos e disse:

“Por que você não muda de repertório?”

Repórter de uma revista semanal, eu estava no apartamento de RC, na Urca, porque o rei, convidado por Ney Braga, ministro da educação do governo do general Ernesto Geisel, tornara-se membro do Conselho Nacional de Direito Autoral. A entrevista foi um desastre para RC. Ele calçava todas as respostas com um constrangedor chorrilho de “não sei” e, mesmo podando uma dúzia deles na leitura que pediu para fazer no texto antes da publicação, a verdade ficou impressa nas duas páginas da revista. O rei estava nu para ser conselheiro.

PUBLICIDADE

Desde o início da década, RC havia deixado de ser o roqueiro negro gato, o lobo mau, o brucutu, um dos sete cabeludos dispostos a enfrentar qualquer parada. Definitivamente, não tinha mais nada a ver com a vibração anarco-adolescente de ser terrível, de parar na contramão, de ser o homem que matou o homem mau e mandar tudo pro inferno, sua identidade rebelde da década anterior.

Para o desgosto dos meus vinte-e-poucos-anos, Roberto tinha deixado a vibração revolucionária da Jovem Guarda, o som de pobre, de suburbano com o segundo grau incompleto, mas que não deixava ninguém ficar parado. Também se cansara do namoro com o soul americano. Para minha tristeza de fã da fase pop, ele adotara ênfase exclusiva nas baladas repetitivas em que o violino desbancara a guitarra. O roqueiro já era. A brasa não morava mais ali.

O “por que você não muda de repertório?” não fazia parte da entrevista, dedicada ao debate do direito autoral, de questões culturais (“Em determinadas coisas a censura é necessária, mas não vamos falar disso, é assunto delicado”) e simpatias políticas (“Arena ou MDB? Sou Vasco, bicho”). A pergunta sobre o repertório foi quando eu passei a segunda vez pelo apartamento, para RC ler a entrevista (além do acúmulo de “não sei”, implicou com as reticências sinalizando o vazio de suas falas). O cantor lia a entrevista, pitava o cachimbo, e eu insistia:

“Você mudou a música brasileira, por que parou?”.

Com a exceção de Caetano, de quem gravara “Como dois e dois”, RC tinha desprezado ofertas de Tom, Gil, Fagner e Sergio Sampaio. Agarrava-se a um time de compositores do tempo das vacas magras. Era um pouco de benemerência cristã, outro tanto da crença de não mexer em time que estava ganhando e muito de TOC. Parou de cantar o inferno, bandeou-se para Jesus Cristo.

Em 1976, ele começava a se fixar apenas na outra porção que sempre o acompanhou, a do cantor romântico. Em algumas dessas baladas até botou tesão inédito, como “Cavalgada”, “Amada amante”, “Seus botões”, clássicos de motel. De resto, Roberto Carlos abandonava os fãs das jovens tardes de domingo e se entregava ao mercado de um público conservador.

“Por que não muda o repertório?”, insistiu o jovem repórter, como se fosse possível ao artista explicar os caminhos da Criação.

“Sei lá, bicho, sei lá”, reticenciou Roberto outra vez.


Comentários