O senhor botão

  


 

 Eu sou o homem-botão, o único de ca-

misa social no meio da multidão que
se veste toda na última moda das ca-
misetas detonadas e na base do quan-
to-mais-andrajoso-melhor. Trata-se de um ca-
so perdido, de uma fashion victim ao contrá-
rio. Alguém preso às tradições e desinteres-
sado em saber que todos os outros estão
usando camiseta em casamento, congresso
da empresa e missa de sétimo dia. Eu sou um
erro de concordância vestimental, alguém di-
retamente da era do trema e do colarinho. Um
espanto. O último a usar camisa social de bo-
tão com acentuação visual pré-Herchcovitch.
Abram alas para matar suas curiosidades de
como um homem se escondia atrás dos panos
do século passado. O cara que não pegou os
códigos, que ainda perde tempo arregaçando
as mangas. Ele põe as fraldas da camisa para
dentro da calça, acha que ainda há uma roupa
para cada ocasião. Esses velhos, pobres ve-
lhos. Sempre querendo causar boa impres-
são, se vestir nos conformes, passar para o
próximo a sensação de asseio, banho tomado,
e que após vistoriar o guarda-roupa escolheu
a melhor camisa para valorizar o evento. Um
poço de antiguidades risíveis. Um homem que
certamente também cheira a lavanda e cede o
lugar às senhoras no lotação. Façam fila para
a visitação. É aquele todo engomado, na jaula
logo após a mulher de duas cabeças.
Foram-se as lojas Ducal, o tergal.  O impor-
tante é rasgar a camiseta para mostrar indi-
ferença e falta de pose. Ninguém se importa
com a gravidade dos botões, o silêncio no res-
taurante, essas convenções. Pois eu sou O ca-
ra, não na versão afirmativa da arrogância de
quem foi escolhido pelos deuses para marcar
os grandes gols e instaurar o novo verbo. Eu
sou o avesso. Aquele que na última edição do
Fashion Rio atravessou a passarela no sentido
norte, enquanto os da camiseta iam para o
sul, iam às mulheres e à felicidade de uma rou-
pa desencanada, a sensação do momento.
Eu sou a edição 1950 do "Chic" da Glorinha
Khalil. Aquele que se recusa a trabalhar de ca-
miseta no escritório, porque é do tempo em
que a gola redonda, a malha de algodão e os
bíceps fazendo volume eram coisas a se exibir
pelos operários na pedreira ao lado de casa.
Um homem que não lê o noticiário de moda,
que vai contra a corrente e se isola, Dom Cas-
murro no centenário de Machado. Eu tirei os
acentos do ditongo aberto nos casos paroxí-
tonos, mas esqueci de reformar a ortografia
da camisa e tirar os botões. Um omisso na lu-
ta macha pela deselegância e a liberdade do
comportamento. Oremos todos. As mulheres
apedrejam as que usam peles, os homem dão
boladas em quem usa botão. Eis-me. Eu já fui,
eu já era, eu sou o sepultado no funéreo do
jornal de amanhã. Aqui jaz o homem de cami-
sa social cheia de botão. Foi enterrado de ter-
no e gravata no mausoléu da Casa José Silva.
Pediu que em sua lápide escrevessem "Só as
pessoas superficiais não ligam para as apa-
rências", frase de Oscar Wilde - outro que
morreu profundamente elegante e exótico.
Já se foi o de Neanderthal. Descansa em paz
também o das cavernas. Chegou a vez de to-
dos se despedirem do homem de botão, esse
sujeito com a fileira de rodelas de plástico na
divisória do peito, uma linha sem imaginação
contemporânea que bloqueia a vibração dos
sentidos. A moça do escritório, fã de metal e
skate, ri dele todos os dias. O homem-botão
se veste como os pais do século passado e
não percebe. Há uma necessidade visualmen-
te moderna de se apresentar de um jeito nem-
aí para o que possa parecer conformidade e
aceitação. "Born to be wild", como pedem os
rocks - e, leia, está escrito na camisa de ma-
lha de todo mundo.
A fábrica de botões de Benjamin Button po-
de ganhar o Oscar, mas na vida real sua pro-
dução é dispensável. Quase ninguém usa
mais. Botão aprisiona. Acena, de dentro de
sua casinha careta, cheia de IPTUs a pagar,
com imposição de ordem, tarefa extra num
mundo jovem que tem mais o que fazer. Leva-
se um segundo para se vestir uma camiseta. A
camisa de botão não fica pronta no corpo em
menos de dois minutos. Quantos beijos você
perdeu? Quantas ações deixou de vender nes-
te tempo, homem da camisa social?
O homem-camiseta venceu na encenação
de que elegante é parecer leve e descompro-
missado com os rigores sociais. No trabalho,
na noite, use sempre, rico ou pobre, a mesma
surrada camiseta que lhe aprouver. Os outros
são os arrumadinhos, os escondidinhos, pra-
tos exóticos do velho guarda-roupa macho. A
camiseta detonada, rabiscada de qualquer in-
congruência semântica, é quem está mandan-
do. Siga-a. Ela é o bicho. Ela pega geral. É a
moda sinalizando de uma vez por toda que
quer acabar com essa palavrinha. O impor-
tante não é mais parecer vestido corretamen-
te para a ocasião, mas apontar o moleque fol-
gazão a lhe correr nas veias. Ser um eterno ga-
roto. Se não há futuro, como diziam os punks,
muito menos estilo. Rasgar-se. Largar-se ao
prazer do vento ateu tocando direto nos po-
ros. Respirar o tempo, eis o espírito da coisa.
Menos roupa, meu bem.
Despede-se este que vos fala, cada vez mais
raro, o homem da camisa social com botões,
aquele que não entendeu a pressa da nova ci-
vilização em estar preparada para, num se-
gundo, como sabe o homem-camiseta, ficar
nu, de volta aos jardins do paraíso, pronto pa-
ra o que der e vier. Ninguém tem tempo para
prestar atenção na correção dos punhos, go-
las, bolsos, vincos, padronagens, linhos e,
principalmente, botões macambúzios acopla-
dos em casas. Chega de alfaiataria. Já se fo-
ram as abotoaduras, os prendedores de gra-
vata, o lenço no bolso do paletó, as barbata-
nas fixando o colarinho. Solte-se. Liberte-se.
Abrace nesta vida o que ela tem de melhor. O
velho jingle do desodorante dos anos 70 ago-
ra serve para o que cobre o sovaco.
As moças mais bonitas desta geração con-
tinuam preocupadas em comprar os melho-
res vestidos para desfilar não mais ao lado de
ternos, não mais abraçadas a colarinhos com
barbatanas - mas com o homem de camiseta
avacalhada. Ele ganhou a prova do líder. Com-
preendeu que é preciso não trancar nada e se-
guir a filosofia do flanelinha. Deixar a pele sol-
ta para respirar a liberdade de estar em 2009.
Resta ao homem da camisa social retirar-se
de cena - a vida elegantemente presa dentro
da casinha do botão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O homem-botão
A fábrica de Benjamin Button acabou.
A camisa social vai pelo mesmo caminho
Cláudio Duarte
Eu sou o homem-botão, o único de ca-
misa social no meio da multidão que
se veste toda na última moda das ca-
misetas detonadas e na base do quan-
to-mais-andrajoso-melhor. Trata-se de um ca-
so perdido, de uma fashion victim ao contrá-
rio. Alguém preso às tradições e desinteres-
sado em saber que todos os outros estão
usando camiseta em casamento, congresso
da empresa e missa de sétimo dia. Eu sou um
erro de concordância vestimental, alguém di-
retamente da era do trema e do colarinho. Um
espanto. O último a usar camisa social de bo-
tão com acentuação visual pré-Herchcovitch.
Abram alas para matar suas curiosidades de
como um homem se escondia atrás dos panos
do século passado. O cara que não pegou os
códigos, que ainda perde tempo arregaçando
as mangas. Ele põe as fraldas da camisa para
dentro da calça, acha que ainda há uma roupa
para cada ocasião. Esses velhos, pobres ve-
lhos. Sempre querendo causar boa impres-
são, se vestir nos conformes, passar para o
próximo a sensação de asseio, banho tomado,
e que após vistoriar o guarda-roupa escolheu
a melhor camisa para valorizar o evento. Um
poço de antiguidades risíveis. Um homem que
certamente também cheira a lavanda e cede o
lugar às senhoras no lotação. Façam fila para
a visitação. É aquele todo engomado, na jaula
logo após a mulher de duas cabeças.
Foram-se as lojas Ducal, o tergal.  O impor-
tante é rasgar a camiseta para mostrar indi-
ferença e falta de pose. Ninguém se importa
com a gravidade dos botões, o silêncio no res-
taurante, essas convenções. Pois eu sou O ca-
ra, não na versão afirmativa da arrogância de
quem foi escolhido pelos deuses para marcar
os grandes gols e instaurar o novo verbo. Eu
sou o avesso. Aquele que na última edição do
Fashion Rio atravessou a passarela no sentido
norte, enquanto os da camiseta iam para o
sul, iam às mulheres e à felicidade de uma rou-
pa desencanada, a sensação do momento.
Eu sou a edição 1950 do "Chic" da Glorinha
Khalil. Aquele que se recusa a trabalhar de ca-
miseta no escritório, porque é do tempo em
que a gola redonda, a malha de algodão e os
bíceps fazendo volume eram coisas a se exibir
pelos operários na pedreira ao lado de casa.
Um homem que não lê o noticiário de moda,
que vai contra a corrente e se isola, Dom Cas-
murro no centenário de Machado. Eu tirei os
acentos do ditongo aberto nos casos paroxí-
tonos, mas esqueci de reformar a ortografia
da camisa e tirar os botões. Um omisso na lu-
ta macha pela deselegância e a liberdade do
comportamento. Oremos todos. As mulheres
apedrejam as que usam peles, os homem dão
boladas em quem usa botão. Eis-me. Eu já fui,
eu já era, eu sou o sepultado no funéreo do
jornal de amanhã. Aqui jaz o homem de cami-
sa social cheia de botão. Foi enterrado de ter-
no e gravata no mausoléu da Casa José Silva.
Pediu que em sua lápide escrevessem "Só as
pessoas superficiais não ligam para as apa-
rências", frase de Oscar Wilde - outro que
morreu profundamente elegante e exótico.
Já se foi o de Neanderthal. Descansa em paz
também o das cavernas. Chegou a vez de to-
dos se despedirem do homem de botão, esse
sujeito com a fileira de rodelas de plástico na
divisória do peito, uma linha sem imaginação
contemporânea que bloqueia a vibração dos
sentidos. A moça do escritório, fã de metal e
skate, ri dele todos os dias. O homem-botão
se veste como os pais do século passado e
não percebe. Há uma necessidade visualmen-
te moderna de se apresentar de um jeito nem-
aí para o que possa parecer conformidade e
aceitação. "Born to be wild", como pedem os
rocks - e, leia, está escrito na camisa de ma-
lha de todo mundo.
A fábrica de botões de Benjamin Button po-
de ganhar o Oscar, mas na vida real sua pro-
dução é dispensável. Quase ninguém usa
mais. Botão aprisiona. Acena, de dentro de
sua casinha careta, cheia de IPTUs a pagar,
com imposição de ordem, tarefa extra num
mundo jovem que tem mais o que fazer. Leva-
se um segundo para se vestir uma camiseta. A
camisa de botão não fica pronta no corpo em
menos de dois minutos. Quantos beijos você
perdeu? Quantas ações deixou de vender nes-
te tempo, homem da camisa social?
O homem-camiseta venceu na encenação
de que elegante é parecer leve e descompro-
missado com os rigores sociais. No trabalho,
na noite, use sempre, rico ou pobre, a mesma
surrada camiseta que lhe aprouver. Os outros
são os arrumadinhos, os escondidinhos, pra-
tos exóticos do velho guarda-roupa macho. A
camiseta detonada, rabiscada de qualquer in-
congruência semântica, é quem está mandan-
do. Siga-a. Ela é o bicho. Ela pega geral. É a
moda sinalizando de uma vez por toda que
quer acabar com essa palavrinha. O impor-
tante não é mais parecer vestido corretamen-
te para a ocasião, mas apontar o moleque fol-
gazão a lhe correr nas veias. Ser um eterno ga-
roto. Se não há futuro, como diziam os punks,
muito menos estilo. Rasgar-se. Largar-se ao
prazer do vento ateu tocando direto nos po-
ros. Respirar o tempo, eis o espírito da coisa.
Menos roupa, meu bem.
Despede-se este que vos fala, cada vez mais
raro, o homem da camisa social com botões,
aquele que não entendeu a pressa da nova ci-
vilização em estar preparada para, num se-
gundo, como sabe o homem-camiseta, ficar
nu, de volta aos jardins do paraíso, pronto pa-
ra o que der e vier. Ninguém tem tempo para
prestar atenção na correção dos punhos, go-
las, bolsos, vincos, padronagens, linhos e,
principalmente, botões macambúzios acopla-
dos em casas. Chega de alfaiataria. Já se fo-
ram as abotoaduras, os prendedores de gra-
vata, o lenço no bolso do paletó, as barbata-
nas fixando o colarinho. Solte-se. Liberte-se.
Abrace nesta vida o que ela tem de melhor. O
velho jingle do desodorante dos anos 70 ago-
ra serve para o que cobre o sovaco.
As moças mais bonitas desta geração con-
tinuam preocupadas em comprar os melho-
res vestidos para desfilar não mais ao lado de
ternos, não mais abraçadas a colarinhos com
barbatanas - mas com o homem de camiseta
avacalhada. Ele ganhou a prova do líder. Com-
preendeu que é preciso não trancar nada e se-
guir a filosofia do flanelinha. Deixar a pele sol-
ta para respirar a liberdade de estar em 2009.
Resta ao homem da camisa social retirar-se
de cena - a vida elegantemente presa dentro
da casinha do botão.

 

 

 

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