Sou da Penha, ponto final

Última parada na viagem pela felicidade suburbana

Pela última vez este ano dê um passinho à frente, fale com o motorista somente o indispensável e apresente
seu passe ao fiscal, pois está saindo o ônibus para o subúrbio de uma Penha que não existe mais e fica, se não falha o óleo de rícino, se está certa a Estampa Eucalol, na confluência do chorinho do Sovaco de Cobra com o samba na casa do Natal, o bicheiro sem braço e sempre com uma camisa branca em que se destacava
mês sim, mês não, um fumo de luto. Nós vamos passar pelo hospital do Engenho de Dentro onde ficou internado o compositor Sergio Sampaio, pelo bairro de Todos os Santos onde morou o escritor Lima Barreto, pelo terreiro de Mãe Adedé, onde um dia baixou Josephine Baker ainda viva, e pelo salão de beleza, na Edgard Romero, onde uma noiva, na véspera de seu enlace matrimonial, foi picada por uma lacraia escondida no aplique do cabelo e veio a falecer antes de entregar ao esposo amado o que de mais sublime havia guardado em seu ser.
Acredite se quiser, não se devolve ingresso. Durante esta viagem serão servidos uma seleta de churrasquinho de gato e, ao gosto do passageiro, a cerveja Black Princess ou o guaraná Princesa, produtos da cervejaria que pode ser vista à direita, quando o ônibus passar por Triagem. Dito tal, salve o Benedito e o Juvenal.
Aperte seu cinto e afivele a imaginação, que lá vai o lotação sete passageiros, um fordeco que parecia aquele dos “Intocáveis”, recolhendo os últimos suburbanos que ainda se lembram da vedete Zaquia Jorge, dos  acampamentos de ciganos, do armazém com serragem, e do Jaburu, o craque do Fluminense que morava nas circunvizinhanças de Irajá e terminou seus dias mendigando um trocado. Os mortos são velados em cima da mesa onde fizeram suas refeições, as meninas são repreendidas porque estão deixando aparecer a anágua, os meninos curam tersol passando a aliança aquecida na pálpebra inchada. Se faltar assunto para conversa você vai ver no caminho para Madureira a loja em que, a um toque de botão do caixeiro, o caldo de cana vem  rodopiando pelos rolos esverdeados da traquitana. Esta é a última viagem de 2010 para dentro
da tela do cine Carmoli, na Praça do Carmo, onde está passando um filme de Maciste em 3D. É o último tíquete para o baile na estação da Piedade, de onde Jorge Veiga cantava novidades, coisas de arrepiar. Outras passagens só serão vendidas quando o Repórter Esso, testemunha ocular da história, irromper no
rádio, na voz de Heron Domingues, e trouxer toda a família aflita ao redor das válvulas do  aparelho para informar, em edição extraordinária, que morreram 500 no incêndio do Circo Americano, em Niterói.
Pegue seu lugar, chupe o drops Dulcora life guard, aquele com o buraquinho no meio, e seja o que o seu santo quiser. Aos passageiros com alguma indisposição estomacal será servido um copo de limonada
purgativa, pedindo-se o cuidado de em seguida colocar o frasco de cabeça para baixo a fim de que o medicamento faça o efeito devido. O subúrbio, ilustre passageiro, só funciona se você tiver imaginação. Veja, por exemplo, o belo tipo faceiro que vai ao seu lado. Foi salvo pelo Rum Creosotado e virou clássico da propaganda.
Acerte sua cebola pela Rádio Relógio, que estará como fundo sonoro durante toda a viagem. Ao terceiro sinal, são cinco da tarde. Depois do sol quem ilumina seu lar é a Galeria Silvestre. Eu sou da Penha, acho que já disse, do bafobafo, do pião na mão, da Maria Preta feita de jornal, das cadeiras na calçada, de uma região
ali entre a casa dos palhaços Olimecha e os malucos da Juliano Moreira. Esses predicados, mais o fato de ter jogado no Ouro Negro,que tinha as camisas compradas pelo bandido Cabeleira, me puseram o microfone do tour na mão e me autorizam a narrar o que vai pelas janelas desta viatura. Ali na Rua Honório, em Irajá, Luiz Carlos Prestes foi preso de pijama com Olga Benário. Ali na Rua Doutor Bulhões, no Engenho de Dentro, José do Patrocínio fracassou na tentativa de construir o Balão Santa Cruz, que transportaria passageiros como os senhores pelos cenários da imaginação suburbana. Ali na Rua Cintra, na Penha, visitaremos o cinema em que uma ceguinha é a responsável pela bilheteria e pela projeção dos filmes, sem que nunca   alguém da plateia tivesse gritado “Olha o foco”.
É subúrbio que não acaba mais e ainda não vimos o footing das normalistas da Carmela Dutra, o show  “Sacode a jaca” das vedetes em frente da estação de Madureira ou um cruza de rabiolas com gilete. Muito menos passamos  pelos intervalos das sessões do Cine São Pedro, onde continua tocando o único disco
do acervo da casa. É o mesmo “Concerto número um para piano e orquestra”, de Rachmaninoff, que  embalou os beijos de milhares de namorados e agora serve de fundo musical para os votos de um maravilhoso 2011 a todos os leitores que acompanharam as viagens deste ônibus 355 (Madureira-Tiradentes) pela felicidade suburbana — tudo gente humilde e sem qualquer vontade de chorar.

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