Salve o compositor popular



Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor, quero passar com os meus quereres, podres poderes e com o conselho para todos verem “Palavra (en)cantada”, filme de Helena Solberg sobre as relações da poesia com a música popular brasileira. Como dois e dois são cinco, não tem erro aqui também. Um filmaço. É um documentário sobre o melhor deste rancho fundo, um país cada vez mais para cá do fim do mundo, onde o carcará está pegando geral.
Helena deu um viva! ao compositor popular. Ela filmou um viva! ao único lugar onde Orestes Barbosa poderia pegar do violão e chegar à conclusão - moreno, eu te dou grau dez! - de que a lua é gema de ovo no copo azul lá do céu. Fê-lo bem. Os senadores não valem nada, mas os letristas são demais. Eles pisam os astros distraídos, iluminam mais a sala que a luz do refletor, botam o bloco na rua e, quando abrem seus cadernos Moleskine, eles fazem um novo país. Inventam a mulata bossa-nova, o moreno de camisa listrada no turbilhão da galeria, a rainha do frevo, do maracatu, e a lourinha dos olhos claros de cristal. São esperançosos e distribuem esse fruto maravilhoso. Sabem que, enquanto o tempo não trouxer abacate, amanhecerá tomate e anoitecerá mamão. Da árvore deles sempre vem algum alimento.
As letras da MPB são o pau, são a pedra, são o início do caminho para quem gosta de palavras se mexendo. Eis o meu caso. Eu gosto que me enrosco de ouvir dizer “bigorrilho”, “maracangalha”, “analfomegabetismo”, “pó pará com o pó” e, por isso, peço atenção para o refrão. Eu li Lobato, depois devorei Rubem Braga, depois Machado, Graciliano, Rubem Fonseca e agora Cristóvão Tezza. Gênios das letras cultas, para serem lidos em silêncio sob a luz do abajur lilás. Antes de todos, porém, li os letristas da MPB e a eles aqui presto meu preito. Aprendi as primeiras letras com os lamartines das marchinhas, professores capazes de decifrar conhecimentos do mundo e dizer, bem explicadinho e com humor, que quem inventou o Brasil foi seu Cabral, dois meses depois do carnaval. Depois aprendi com os caetanos tropicalistas, finos meninos do lado do sim, a perceber beleza quando “seus peitos direitos me olham assim”. A letra de música foi o meu primeiro passo em direção aos “Lusíadas” e aos “Sertões” - e é mais ou menos isso, se eu entendi certo, que “Palavra (en)cantada” diz acontecer com a maioria dos brasileiros.

Não temos grandes orgulhos pátrios. Inventamos a bicicleta do Leônidas, o drible da vaca do Pelé, construímos Brasília, alimentamos as duas polegadas a mais de Marta Rocha, amulatamos o rebolado da branquela Gisele Bündchen e temos esse visual inacreditável que, quando o assaltante faz o favor de sair da frente, está sempre disponível na janela do carro. Paira, acima de tudo, uma música espetacular e, no meio dela, um ajuntamento de gênios dedicados a escrever letras. Manuel Bandeira dizia que “Tu pisavas os astros distraída”, de Orestes Barbosa, era o mais belo verso de toda a poesia brasileira. Vinícius de Moraes não cansava de citar seu preferido “Tens um olhar/ que me consome/ por caridade, meu bem/ madiga seu nome”, de Ismael Silva. Paulo Mendes Campos destacava Noel Rosa, que na letra de “A cor de cinza”, um samba pouco divulgado, tascou “A poeira cinzenta da dúvida me atormenta”.

Uma conversa sobre o mais bonito verso da música popular brasileira é, tamanha a possibilidade de escolha, uma conversa tão interminável quanto saber, se Paul ou John, quem era o melhor dos Beatles. Há quem cite Chico Buarque de Holanda, autor do belíssimo “Se na bagunça do teu coração/ Meu sangue errou de veia e se perdeu…” Eu votaria em “Você é meu caminho/ meu vinho, meu vício/ desde o início estava você”, embora não estivesse mentindo se em seguida riscasse a frase e colocasse em seu lugar o “Rapte-me/ adapte-me/capte-me/ it’s up to me, coração/ser/querer/merecer ser/ um camaleão”, do mesmo Caetano Veloso.
O filme de Helena Solberg passeia por dezenas dessas opções, explica algum Olavo Bilac que aparecia nas letras de Cartola e outro tanto dos modernistas nos refrões das marchinhas. Principalmente, deixa que Chico, Adriana Calcanhoto, Tom Zé, Lenine, AnTõnio Cícero, Martinho da Vila e Arnaldo Antunes revelem como fazem suas bandas passar, de onde surgem seus cariocas que não gostam de sinais fechados. O filme explica como foi se formando no país uma tradição de compositores tão notáveis que um dos tópicos mais recorrentes para animar conversa de botequim é o clássico “Seria poesia a letra de música?” - e neste momento sempre entra o chorrilho delicioso de exemplos para justificar o sim. (A propósito, eu quero dizer agora o oposto do que disse antes e votar, como os mais belos versos da MPB, em “Tu és divina e graciosa/estátua majestosa do amor/ por Deus esculturada”.) Isto aqui é um pouquinho do país que inventou o drible “pedalada” e o verso “Reconhece a queda e não desanima/ levanta/ sacode a poeira/ dá a volta por cima”. É o país que deu artefinal à sandália havaiana e escreveu, como se as palavras também estivessem rebolando o “olha que coisa mais linda / mais cheia de graça”. Se o Lula é mesmo “o cara”, como diz Obama, tenho minhas dúvidas. Meu voto vai para o compositor popular.

Comentários

  1. Quando esta crônica foi publicada no jornal?

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  2. Oi vivi,

    vou fazer uma pesquisa para confirmar a data e te falo. bjus

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  3. Oi Vivi,

    não consegui achar a data que esta crônica foi publicada no jornal. desculpe.

    abs

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