Sou da Penha – 2


Nova viagem afetiva ao cenário da guerra carioca

Como eu ia dizendo, até ser interrompido pelo tiroteio no Alemão, pela metralhadora Lurdinha do Tenório Cavalcanti e pela Remington do David Nasser escrevendo “Penha, Penha, eu vim aqui me ajoelhar” — eu sou daquelas bandas. O vizinho da direita ensinava o papagaio a dizer “Casas da Banha” para concorrer ao prêmio na “Discoteca do Chacrinha”. O da esquerda recebia o espírito de Nero, o imperador de Roma, e só depois saía para trabalhar como engolidor de fogo no Largo da Carioca. Acredite se quiser, dizia um programa da Nacional tocando no resto da rua. Parece a Macondo de García Márquez, a Penny Lane do Paul McCartney. É a Vila da Penha que vai em todos nós. Pois eu nasci ali, num clima quente, duas quadras depois de onde estão estacionadas as tropas do Beltrame e um pouco para cá da quadra de ensaios do Bohêmios de Irajá. Apenas um morador sem importância da casa de pedra no meio do caminho entre a barraca que vendia maçã do amor no Parque Shanghai e o coreto de Vaz Lobo do ano em que homenageou o Sputnik. Uma moça de sarongue canta “Laranja da Bahia tem o umbigo de fora, por que é que você, Maria, escondeu o seu até agora?” — mas isso não vem ao caso. Sou da área, do pique-esconde, da cabra-cega, do pique-bandeira, do morto-vivo, do jogo da amarelinha e do terreiro do Seu Sete da Lira soltando fumaça pelo charuto. Sou da Penha Circular, do calor do cão, da baixada suburbana, um quinzinho qualquer fichado como di menor pelo delegado Nelson Duarte, da Invernada de Olaria, por ter pulado a roleta sem pagar o trem. Nada a declarar a não ser o de sempre. “Marraio, feridô sou rei”. Deus guarde o senhor delegado, com sua gomalina e terno branco. Era um dos homens de ouro do Esquadrão da Morte, um sujeito sobre o qual nada constava a não ser o fato de ir ao programa do Fáavio Cavalcanti e dizer “a polícia como um toldo”. Sou a tudo grato e tomei nota no caderno de caligrafia. Obrigado também ao padre de sotaque alemão que ao ouvir o barulho das crianças levantando para receber a hóstia consagrada na missa de domingo dizia: “Levantou a cavalaria.” A todos, peço bênção e saúdo com figurinhas das balas Ruth, uma umbigada da mulata que me vai ao lado no bonde 98 (Irajá-Madureira) e o primeiro gole da que matou o guarda ao pé do balcão. A Penha ainda me serve de toldo, e, agora, numa gravação recente de Caetano Veloso para o mesmo baião de David Nasser, peço que ela traga “proteção para o meu lar”.
Eu sou aquele ali, moendo vidro na linha de trem para fazer cerol, aquele acolá colocando
gilete na rabiola da pipa, e ainda aquele outro tomando uma colher de óleo de fígado de bacalhau para manter a memória sempre viva. É ela agora quem me conduz a bordo do 355 (Tiradentes-Madureira) até a Adega d’Ouro, em Vicente de Carvalho, para comer uma posta de bacalhau. É a memória quem retrocede até a cancela da estação de Irajá, passa pelo Cacique de Ramos, o Bafo da Onça de Oswaldo Nunes, e sobe na calçada da Carmela Dutra, onde a normalista me diz que precisa de um menino para lhe urinar nos pés e curar uma frieira. Salve a medicina suburbana, o emplastro Sabiá e o xarope de alcatrão de São João da Barra. Se não me falha a memória, e salve também a ajuda do Biotônico Fontoura, eu sou aquele outro, no canto do vídeo, crente nas orações de Julio Louzada ao Menino Jesus de Praga e ao mesmo tempo agradecido à cozinheira, neta de escravos, fã de Anísio Silva, por ter curado uma espinhela caída com banho de arruda e reza forte. Eu sou da Vila da Penha, da Penha sempre a me Circular, e tenho como mantra as canções “Guará, Guará, melhor refrescante não há” e “O meu coração é só de Jesus, a minha alegria é a santa cruz”, músicas que dedico àquela moça de saia de tergal plissada e blusa Banlon vinho, comendo algodão-doce no banco à esquerda de quem entra no Parque Ari Barroso.
Eu morei ali, dá para ver direitinho no Google Earth, um pouco mais para cá da fábrica de biscoitos Piraquê, um pouco para lá da Lira do Xopotó no coreto do Jardim do Méier, exatamente ali naquele quarto escuro onde o menino está soltando da caixa de fósforos os vaga-lumes que caçou na rua. A noite daquele quarto piscava mais bonita que as estrelas no céu de Van Gogh, mais irreal que todos os fogos do réveillon de Copacabana, mais frenética que todos os neons de Times Square, mas ele só saberia disso muitos anos depois e só não seria tarde demais porque arquivou a cena bem guardada graças aos bons serviços prestados à memória da criança suburbana pela gemada de Caracu batida com ovo, canela e noz-moscada. De vez em quando os vaga-lumes ainda piscam nos dedos do menino, e isso faz com que ele se lembre do cheiro de capim molhado do Largo do Bicão, do medo de morrer de vento encanado, do prazer de um pião rodando na palma da mão, ou de alguma menina perguntando se uva, pera ou maçã — e ele escreve longas histórias no jornal, às vezes tão mais compridas que a estrada de Brás de Pina, às vezes tão mais tristes que as rolinhas que ele prendia no alçapão do quintal. É o Bope das forças afetivas que ele desenvolveu e para sempre carrega, em caixas de fósforos Olho, Pinheiro ou Beija-Flor, no bolso da japona. É o que o menino pode fazer pelos vizinhos.
Quer evocar o guarda-noturno, os sacos de doce de Cosme e Damião, o jacaré que dormia embaixo da sua cama, o vendedor de Chica Bon e mais as armas de Jerônino, o herói do Sertão, para que a memória dos bons dias ajude a apagar as balas traçantes e faça acender de novo o inesquecível pisca-pisca dos vagalumes no meio da noite da Penha Circular.

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