Sou da Penha


Uma viagem afetiva ao cenário da guerra carioca

Eu sou da Penha, mais exatamente da Vila da Penha, que fica um pouco depois da Vila Cruzeiro, da Invernada de Olaria, do noticiário do Alemão e da festa da Penha, aonde eu costumava ir, quando chegava outubro, dar umas pernadas com João da Baiana e outros bambas da minha época. Sou da área, mais exatamente aquele garoto ali, no meio da molecada descalça, correndo atrás do carro do bicheiro que joga dinheiro para o ar. Nenhum orgulho especial, nenhum preconceito a esconder. Destino e bola de gude. Estava escrito na bandeira do clube e hoje me serve de tatuagem no bíceps direito: “Marraio, feridô sou rei.” Matei muito passarinho com estilingue para vender com caldo de cana na barraca do Nestor, do Parque Shanghai, logo ao sopé da igreja, e isso tudo ficava meia dúzia de ruas depois que você cruza o bunker do Zeu, passa pelo terreno do curtume onde a Fera da Penha
matou a filha do amante, e depois é só ir descendo Brás de Pina abaixo. Eu sou aquele ali, assustado com o céu da noite borrado de vermelho pela explosão do paiol de Deodoro e animado com o desfile que o Império Serrano fazia na segunda-feira de carnaval, Calixto dos Pratos tocando alucinado na frente da bateria, pelo Largo de Vaz Lobo.
Eu sou da Penha, sócio do Mello Tênis Clube, vizinho do terreno baldio onde moravam a
mula sem cabeça e um circo que uma noite apresentou a mulher barbada — e a monstra
fugiu da jaula no meio do show e me botou para correr! Sou dali, quadras depois da Vila
Cruzeiro e da “Patrulha da Cidade”, sempre na Rádio Tupi com a voz do Samuca. Essas vozes
suburbanas ainda me assopram o que devo escrever. Aprendi as primeiras palavras na
Escola Grécia, no Largo do Bicão, as segundas passando cerol na rabiola da pipa, e as terceiras roubando meias de náilon no varal da vizinha para fazer bola com recheio de jornal. O
jornalismo foi consequência. Eu sou mais exatamente da Rua Tejupá, bem depois de onde enterraram o corpo da vedete Zaquia Jorge, a rainha de Madureira, que se afogou durante banho de mar na Barra da Tijuca. É tudo um imenso manguezal da memória. Os bandidos fogem entre garotos caçando rãs, o céu ainda está coberto de balões que comemoram a vitória do Brasil na Copa de 1958, e o rádio toca sem parar Anísio Silva cantando a música número 13 do “Peça Bis pelo Telefone”, da Rádio Mayrink Veiga. O tempo ficou congelado na Vila da Penha, a televisão sempre passando o “Riso é o Limite”, patrocinado por aquele jogo de toalhas de mesa que “Parece linho, mas é Linholene”. Depois, no meio da noite, aparecem aos garotos, sempre roliças e frescas, as coxas da Sandra Sandré, e eles se ajoelham aos pés da cama, fazem as orações recomendadas na aula de catecismo e pedem aos deuses que o futuro lhes ponha mocotós de mesmo tamanho e temperatura em suas mãos.
O tempo não existe nessa Macondo suburbana, de galinhas vivas compradas em embrulho de jornal, afiadores de faca anunciando que alguém está para morrer na quadra onde ele fizer seu assovio diabólico. As pessoas batem as botas e depois reaparecem no centro espírita, duas ruas depois do campinho em que o Romário joga bola. O suburbano sai de um plano existencial e se muda para outro, mas não morre em quem passou por lá. Eu sou da Penha, muitos pontos de ônibus depois de onde estão estacionados os caveirões do Beltrame, morador da casa em frente à Vila Prosperidade, famosa porque nela o craque Maneco, do América nos anos 50, premido pelas dívidas jogou uma colher de formicida no copo de guaraná e pediu para sair. Os meninos leem Carlos Zéfiro. As meninas usam anáguas e combinações. O guarda-noturno apita, o leiteiro bota a garrafa de leite Vigor na porta, e a vida segue, um passinho à frente, por favor, tudo com a bênção de Alziro Zarur na Rádio Mundial.
Eis a geografia que me é natal, o berço esplêndido e a manjedoura inesquecível. Quando
eu ouvi os primeiros tiros das forças legalistas invadindo o Complexo, fui correndo procurar na “Luta Democrática” se eles tinham prendido o Cabeleira, um bandido que fugiu pela rua da Zilda do Zé, nos fundos da Estrada do Quitungo, uma ladeira logo acima do campinho em que aos domingos os 11 Cometas, com a camisa azul e uma faixa horizontal branca, jogavam contra algum time de Brás de Pina. Depois do jogo, na sede social da Rua Honório Pimentel, eles dançavam ao som de “Diana”, com Paul Anka. Eu sou da Penha, vou pedir à padroeira para que o Exército, a Marinha e a Aeronáutica não me expulsem de lá, pois foi onde aprendi o mantra de “Tá com medo, tabaréu, tua linha é de papel” e isso não é pouca filosofia de vida. É o prato de sabedoria, junto com o melado servido no recreio da escola, em que me alimentei. De noite, ali pelas seis, uma voz saía da Rádio Nacional e completava a lição perguntando “Quem sabe o mal que se esconde nos corações humanos?”, e ela mesmo respondia em nome do herói da série: “O Sombra sabe.”
Eu professava os costumes locais, pegava lotação andando, era televizinho e, na escola, colocava o espelho na ponta do sapato para absorver melhor as lições da professora. De pouco mais lembro para declarar aos jornais e juntar minha voz aos que celebram a Penha pacificada, a única que eu conheci. Eis tudo. Eu morava numa casa com cadeiras na calçada e na fachada estava escrito que era o lar de Joaquim e Hilda, tudo isso a meia dúzia de ruas das mães que agora entregam os filhos traficantes às forças policiais. Eu sou da área, viciadoem carniça, em bola ou búlica, em balão japonês e naquela brincadeira de abrir, com a mão em cunha, a mão em cunha das meninas — e deixar pingar lá dentro, para a eternidade do tempo, o meu doce anel suburbano.

Comentários

  1. vc esqueceu de falar da radio relogio que fazia tuc tuc tuc voce sabia......e tambem do cassamenteiro do radio raul longras onde as viuvas tentavam encontra outros maridos. mas valeu gostei de ter lido

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