Meteoro de paixão

Não existe bem e mal em música popular

Eu não sou cachorro, não, para viver me explicando, mas vi o musical “Paletó de lamê”, em cartaz no Teatro Café Pequeno, no Leblon, e queria dizer que estou de acordo. Brega é a vovozinha. Gosto de música popular, do tipo sem rótulo, do tipo que ousa dizer seu nome. Aquela que um dia vai para Maracangalha e leva um pé na bunda, depois pega o trem de São Januário e chora de saudade, até que num domingo aceita a carona do Menescal e entra no barquinho que vai a um bom lugar, à beira-mar, Copacabana. Música não é só o caminho intelectual que passa pelo Rancho Fundo de Lamartine.
Eu andei de fuscão preto, eu dormi na praça, eu pedi ao garçom que, se eu pegasse no sono, me deitasse no chão.
Já decorei outras centenas de letras de toda essa delícia que se convencionou chamar cafona em música popular. Durmo com elas. De vez em quando tiro uma frase da coleção e publico no meio de um texto. Sei que no corpo meigo e tão pequeno delas mora uma espécie de veneno, de prazer irresistível. Às vezes, fingindo o generoso, dou crédito ao autor, e neste momento gostaria de citar Reginaldo Rossi como o responsável pelo período anterior. Em geral, pego na mão grande e, orgulhoso do estilo delas, uso as como se fossem minhas. Não se pode ter tudo. Felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes.
Se ninguém estivesse lendo, eu diria. Ouça os Menudos. Não se reprima.
Se a polícia não chegasse aqui agora, eu recomendaria. Aperte uma Frenética. Abra suas asas.
De onde veio o baião? Que mistério tem Clarice? Que será da minha vida sem o teu calor? Nega do cabelo duro, qual o pente que te penteia? Ninguém sabe as respostas. Ninguém sabe como se soma dois e dois para dar cinco e formar o paladar musical. Eu sou feliz com o meu. Desde os 9 anos tenho o meu coração de luto, que depois juntei ao coração materno arranjado pelos tropicalistas. Se isso fosse um texto de autoajuda, eu diria. De quantos mais tipos de música você gostar, melhor. Eu prefiro todas.
Brega é um rótulo para um tipo de música que teve a pouca sorte de surgir depois da bossa nova. Orestes Barbosa seria brega se escrevesse “A lua é gema de ovo no copo azul lá do céu” depois de Ronaldo Bôscoli. Como Moisés no Mar Morto, os garotos de Ipanema separaram as águas do grande rio das canções e estabeleceram: algumas são de bom gosto, geralmente as feitas por pessoas brancas de formação universitária ou pessoas pretas de nenhuma formação. Outras, decidiram os bacanas ao balanço da garota que vem e que passa, outras são o fim, o lixo, coisa de pardos-suburbanosginasiais que ficaram no meio do caminho, sacolejando no vagão da Supervia.
Não tem problema, não, eu só quero que a MPB se encontre, perca o preconceito, a vergonha na cara. Saiba que passei a noite procurando tu. Encontrei o resto da nossa turma.
A garota papo-firme, a Doralice, a Lindoneia, a mulata bossa nova, a bilu teteia, a que vestiu azul e aquela que o Lindomar Castilho dizia ser doida demais. Lindas, todas. Umas gostam de sofisticações harmônicas, outras preferem faro- fa-fá. Daqui mando este beijo em forma de meteoro de paixão para a secretária da Beira do Cais e digo poxa, como foi bacana te encontrar de novo. O meu sangue ferve por você. A saudade é um dom, é melhor que caminhar sozinho — e por aí afora.
Não existe bem e mal na música popular.
Sinhô deu à amada “um beijo puro na catedral do amor”, Ary Barroso descreveu lábios que eram “duas joias de coral no engaste sensual da tua boca”. Apesar da breguice latejante de suas veias inspiradoras, entraram merecidamente para os compêndios como aqueles pioneiros que levantaram a tampa do piano, tiraram o violão do saco e fizeram um país. Bom gosto era ampliar o gosto, e Tom Jobim citou Jararaca e Ratinho numa de suas canções. As macacas de auditório da Nacional uivavam com Orlando Silva.
O gosto musical é uma mistura da história de cada um. Um liquidificador com o alto-falante que você ouviu no parque de diversões, o DJ que tocou anteontem na Matriz, a negra que cantou o boi da cara preta para embalar seus sonhos. Leve ao forno da imaginação, pense na namoradinha do amigo, na Sandra Rosa Madalena, e, vem cá, seu guarda, temos o prazer musical do distinto ouvinte.
Relaxe e goste. Em música, o passado não deve condenar ninguém.
Por isso, feito a turma do “Paletó de lamê” do Teatro Café Pequeno, eu gosto da nega maluca jogando sinuca, da Conceição subindo o morro, da menina do anel de lua e estrela, e da vizinha quando passa com o seu vestido grená,que foi mais ou menos o que eu ouvi primeiro e arquivei. Depois juntei esses sons com os do “Time out”, do Dave Brubeck, do “Kind of blue”, do Miles Davis, e do rock do Sargento Pimenta. Deu no que deu. Tom Zé encontra Odair José, passa para Zé da Zilda, que deixa Zé Miguel Wisnik finalizar.
Eu não sou cachorro, não, mas vou atrás de tudo que aos meus ouvidos soe canto de sereia. Da Maria Candelária, a alta funcionária, até a Carolina na janela, todas me falam ao coração. Tenho o desejo sincero de tirá-las desse lugar, estejam onde estiverem, na rua, na chuva, na fazenda, e todas levar para ficar comigo, sem me interessar o que os outros vão falar. Mando um beijo na alma de Severina Xique-Xique, e peço que leve esta carta-crônica àquela ingrata que um dia me deixou por ser brega.
Música boa não tem esses falsos pudores. Em algum momento percebo que Custódio Mesquita iniciou uma civilização a partir das teclas do seu piano, mas folgo em admitir. Waldick Soriano fez bonito em abrir o peito e dizer, último macho sensível da MPB, que o homem quando chora — e é o que faço agora, nesta última frase antes de sair de férias — traz no peito uma paixão.

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