O carnaval vai bem, mas esqueceram a trilha sonora
Há uma cidade inteira querendo brincar de novo o carnaval, disposta a inventar as fantasias mais malucas, passar o constrangimento de fazer xixi no meio da rua e, como praticavam seus antepassados, voltar a soltar a franga. Esqueceram da trilha sonora.
Se antes havia compositores da pesada ajudandoa festa com canções geniais, agora ninguém pensa mais no assunto. Carnaval não é só uma latinha de cerveja na mão, banheiro químico entupido e choque de ordem careta. Falta o texto cantado que dê a liga, a música que diga nessa onda que eu vou e faça todo mundo pular porque uma nega maluca, que vinha jogando sinuca, espalhou o pó de mico no salão.
Falta ao tríduo momesco, nosso mais lindo clichê festivo e agora redivivo, a música que ponha o folião em marcha para a apoteose da grande alegria. Urge um novo Braguinha, e que de preferência ele não tenha nada a ver com o velho João de Barro, mas faça o básico. Ponha a multidão para gritar a felicidade moderna de brincar novamente o carnaval de sempre. Festa sem música não existe.
Os mijões são lamentáveis, sem dúvida, as autoridades não tomam jeito, como sempre, e só no Brasil mesmo uma festa basicamente de jovens é patrocinada por uma cervejaria. Leva tempo, mas dá-se um jeito nessa canalha. O problema do novo carnaval do Rio é não ter uma música que fale dos costumes, sacaneie os políticos e dê um refrão que ajude a paquera com o papo de hoje. Deve haver, passado tanto tempo, uma terceira opção para lugar quente além da cama e do Bola Preta. São quase 500 blocos oficializados, será que nenhum deles tem um compositor que exalte as suas glórias, admire o umbigo de suas fantasiadas, e espalhe a novidade pela cidade?
Deve haver um lugar mais moderno para se passar os muitos dias da festa do que o deserto do Saara onde há quase um século o sol está tão quente que sempre queima a nossa cara. Ninguém reclama mais disso. Depois do bloqueador solar só queima a cara quem quer.
Falta música. Pode ser muito divertido cantar a mulata bossa nova que caiu no hully gully,mas essa senhora está morta faz tempo e esse hully gully ninguém sabe mais dançar. É preciso um novo compositor, uma nova maluquice cantada que bote os olhos em cima dessas garotas coxudas das academias, nessas outras siliconizadas das clínicas, e exalte a delícia de todas com a dicção dos tempos.
A alegria do carnaval não é a lata de cerveja. É a música.
Pode-se pedir alguma coisa do funk, dos gritos das torcidas ou seguir na carona dos refrãos das marchinhas que formataram a espécie carnavalesca. Só não pode é uma multidão, louca para ser feliz, andar em silêncio pelas ruas, como se estivesse numa passeata, mas sem causa para gritar, achando que carnaval é atravessar a Vieira Souto enchendo a cara e não tendo onde se aliviar depois.
Falta uma palavra de ordem musical, uma voz que se levante coletiva e, como num show de rock, como no entorno dos coretos de antigamente, faça todos comungarem da mesma vibração. Os baianos inventaram o trio elétrico, uma máquina de música que acabou se encaixando em suas tradições e virou um espetacular lançador de sucessos para todo o país. A música é discutível, mas o que se quer nessa hora é gandaia, o império do bonde sem freio, e o melhor mesmo pode ser um “rebolation” qualquer que tire o sujeito do sério.
O Rio, talvez intimidado pela lembrança dos seus Kellys e Lamartines geniais, parou de produzir música para o carnaval, e o resultado é esta multidão fantasiada que tenta ir em frente sem muita convicção, embalada pelas marchinhas antigas. Nada contra elas, ótimas em blocos que começaram com a recuperação milagrosa de um carnaval que tinha acabado. A retomada da festa passou dessa fase. Foi bom para todo mundo. A cidade deixou de colocar o carro na estrada e ficou aqui mesmo, brincando feliz. Como lhe é de espírito e tradição, se refez mais uma vez.
O Rio é fogo na roupa, e fazer festa é conosco mesmo — mas se no futebol tem música, se na Sapucaí, nos pagodes, nas igrejas e nas casas noturnas também, o carnaval está sendo feito sem ela. Os outros ingredientes estão prontos. O cenário é lindo, o incentivo ao álcool é oficial e a liberdade comportamental das novas gerações, irresistível. Falta aquele compositor popular, numa terra que foi quase toda erigida a partir do talento deles, para traduzir em melodia o que está acontecendo. Ele precisa pegar o touro a unha e, caramba, caracole, fazer o libreto para que a nova ópera pagã cruze a avenida botando os bofes para fora.
Os mais cínicos vão dizer que a música era só um artifício para o sujeito sem imaginação levantar os braços, chegar no broto e, cantando, dizer “Vou beijar-te agora, não me leve a mal, hoje é carnaval”. Não se precisaria mais de texto para beijar ninguém, e os mais moralistas poderiam neste momento falar da cena triste do rapaz que vai pela avenida, esbarra na garota, beija-a por alguns minutos, e depois cada um segue para um lado sem uma palavra. Será que, contra ou a favor, essas histórias não dão um samba para cair, entre um gole e outro da latinha, na boca do folião?
O carnaval se reinventou, num daqueles movimentos que fazem a glória do Rio, e por mais que as cartas dos leitores reclamem dos mijões, das ruas fechadas, isso é assunto para outra editoria. A festa é inevitável e esta cidade sem grandes filósofos, sem grandes fábricas, foi construída em cima desta verdade. Festeja-se a vida, a felicidade de estar aqui e a capacidade de renovação. A próxima tarefa é reinventar a música de carnaval e dar a liga elétrica para que a passeata dos blocos vibre o Rio com uma nova tradução para o grito,
que já devia estar na bandeira da cidade, de “quanto riso, ó, quanta alegria”.
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