O professor

Do baú: memórias de Zéfiro, pai da Bruna Surfistinha

     Ele está em cartaz num teatro do Rio,mas li Carlos Zéfiro nos anos 60, como era a sina dos moleques no tempo. Descabelava-se o palhaço. Ia-se ao cinco contra um. Descascava-se toda a bananeira. Casava-se com a canhota. Praticava-se todo tipo de eufemismo e onanismo. De nada me arrependo, muito menos de todo esse cabelo na palma da mão. Ainda bem que Carlos Zéfiro estava por perto com suas freiras taradas dispostas a ajoelhar e rezar todos os catecismos. As suas secretárias da pá virada, sempre insaciáveis, queriam mais e mais, enquanto do outro lado da página os meninos espremiam as espinhas e varriam para a sacristia católica a culpa que melava o assunto. 
    Foi muito antes de a Bruna Surfistinha surfar na gandaia do cada-um-faz-o-que-quer e gerenciar o sexo sem gonorreia e sem compromisso. 
    Fazia escuro no corpo e não havia uma “Playboy”, uma loja de conveniências eróticas para iluminá-lo. Bastava um mau pensamento para se pagar um chorrilho de ave-maria e padre-nosso no confessionário. Zéfiro, antes do Sexy Hot no meio da sala de jantar, antes das aulas de vibradores da Sue Johanson, foi ele quem ensinou o Brasil a transar de luz acesa e sem o lençol por cima. Ele desenhava  histórias eróticas, “os catecismos”. Acho que não viagro demais quando digo que ele libertou a libido nacional.     
    Sexo ainda não era prosa, nem cinema, nem poesia. Sexo era drama, uma ciência oculta que poderia deixar cego quem se excedesse na masturbação. Os meninos queriam tanto sexo quanto querem os de hoje, mas esbarravam num grande e hímen-complacente problema. As meninas ainda não eram as de hoje. Elas não davam. A música “Não existe pecado do lado de baixo do Equador” foi feita depois.  Foi Zéfiro, quando Chico Buarque ainda estava roubando carro em São Paulo, talvez por não ter com quem fazer um pecado safado, suado e a todo vapor, foi Zéfiro quem começou o esculacho, olha aí, sai de baixo. Ele foi professor.   
    Carlos Zéfiro deu a toda uma geração lá atrás — e essa expressão vai como metalinguagem dúbia para saudar o estilo do cara — as primeiras lições de um assunto que hoje está em qualquer malhação das seis. Sexo, quatro  letrinhas que molham, que suam, que arfam, que fazem o maior barulho na madrugada do condomínio. Elas não eram impressas assim sem mais nem menos em jornal de família. A primeira vez que eu vi a palavra pulsando escrita, cheia de veias, foi na capa do livro de Fritz Kahn sobre vida sexual, um tesouro triste que este pequeno pirata da perna de pau descobriu escondido na gaveta lá de cima no armário de papai. Levei um susto quando comecei a ler. Tinha gosto de óleo de fígado de bacalhau, cheiro de Vick Vaporub. Falava de sexo como se fosse uma aula de medicina legal.
    Zéfiro era alegre. Corria uma cachoeira de dentro de suas musas carnudas de nome Suzete, Alzira, Margô, todas em eterno, descontrolado dilúvio de lubrificação espontânea. Kahn era assustador. Suas virgens vinham banhadas num rio de sangue, prontas para sofrerem as feridas de algum tipo de empalação medieval. Prazer era privilégio macho. Não entendo como no meio de tanto palpitório sobre sexualidade ainda não se traçou uma linha entre a frigidez das  mulheres que hoje estão na faixa dos 50 anos e as primeiras notícias que tiveram sobre o assunto, certamente lendo o capítulo sobre defloramento no livro de Kahn. Sexo era terror obscuro, segredo liberado apenas para quem se deixasse benzer pelos óleos nupciais. De sacanagem mesmo, apenas o fato de ninguém comer ninguém. 
    Foi muito antes de as Brunas Surfistinhas tatuarem um sol nas costas para mostrar que se orgulham da vida que levam e do prazer que entregam em domicílio. Com seus desenhos toscos, Carlos Zéfiro preparava o prepúcio nacional para um dia que parecia não chegar nunca. Seus mancebos bem aquinhoados, espadas monumentais cravando a marselhesa libertária em solo pátrio, ensinavam o leitor a seduzir uma mulher. Como fazer em meia dúzia de quadrinhos que ela mudasse de opinião e, principalmente, em que posições pedir para ela atuar depois de dizer “sim”. Não havia filme pornô. Na televisão, em “O direito de nascer”, Albertinho Limonta beijava de boca fechada. Zéfiro foi um Nureyev tropicalista. Ensinou ao país o pas de deux horizontal e inaugurou os olhos dos garotos no zapping por todos os infindáveis canais do corpo de uma mulher em movimento. 
    Antes de Zéfiro, elas vinham imóveis, dentro de revistas suecas de naturismo. Eram glabras, não por uma depilação erótica ao estilo brazilian wax, mas por censura moral. Pentelho nem pensar. As suecas estáticas,  no meio de algum campo de arroz, inspiravam na molecada o mesmo desejo que os novos modelos da Frigidaire. Tempos de tesão glacial. Genitálias congeladas nas revistas e nas vizinhas. Já as mulheres de Zéfiro saltavam fogo pelos olhos, suas bundas eram franqueadas ao público em corcoveios sem qualquer cerimônia, pecadoras jamais arrependidas que gemiam em ai, em ui, em ipsilone. Inventavam vogais incandescentes que ajudavam a passar, junto com os esgares fabulosos de seus rostos, a esperança e urgência de que um dia você, meu garoto, seria o herói de um daqueles  quadrinhos.
    Algumas intelectuais, mal-amadas não introduzidas na festa, acusavam Zéfiro de machista. Mentiras de cabeça grande. As mulheres das revistinhas tinham o que bem mereciam, e é exatamente o que hoje professa o bom feminismo de raiz: orgasmos aos montes. Se isso não for o néctar da coisa, eu não entendi nada da leitura de Shere Hite. Pré- Marta Suplicy, nosso pornógrafo avisava, sem  retórica, apenas com sua caneta dura, direto ao ponto G, que entre quatro paredes valia tudo, pois é tudo da lei dos corpos. Cada um dava o que lhe aprouvesse e sem preconceito. Anal, oral, homossexual, decúbito dorsal, duplo mortal, ménage e bissexual. Tudo sem necessidade de paixão, amor, qualquer desses drops Dulcora que na literatura da época eram enrolados um a um e serviam de passe para justificar a entrega das carnes. 
    Era a imaginação no poder, o tesão nacional educado para a alegria. Só os vilões broxavam. Zéfiro nunca. Agora de volta, num teatro do Rio, você vai ver que ele continua impávido e colosso, desfraldando a bandeira da liberdade sexual. A saga de seus heróis pode soar ingênua, mas a viga da paixão continua de pé — e as Brunas Surfistinhas, agradecidas, devem ajoelhar e rezar.

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