Parabéns

(*o cronista está de férias. Esta é uma crônica do ano passado mas que vale para os próximos 466)

Cronista se faz de guarda-noturno e zela pelos 445 anos do Rio

Img da internet

Por que hoje é primeiro de março, dia da fundação da cidade, eu desci como se um Estácio de Sá fosse a Ladeira do Morro do Castelo que deixaram ao lado da Santa Casa da Misericórdia e dei uma entrada, logo em frente, no Museu da Imagem e do Som. Fui descansar do sol, ora inclemente, ora senegalesco, do mesmo jeito que não se fazia desde os clichês das páginas de O Paiz. Tomei um frapé de coco da lojinha que o Café e Bar Simpatia, da Rio Branco, mantém no museu. Assisti numa cabine ao DVD da Araci de Almeida cantando Noel Rosa na inauguração do Hotel Glória, quando ela apresentou pela primeira vez a marcha rancho “Há muitas santas no mundo, que vivem fora do templo, santas de olhar tão profundo, você, por exemplo”. Enxuguei uma lágrima furtiva, como não se via alguém fazer desde algum texto de Orestes Barbosa na revista Careta. Foi tudo. Pus-me de novo ao caminho em louvor ao primeiro de março que ora presente se faz.
Eu ando.
Há quem corra, há quem faça psicanálise reichiana e há ainda aquele que paga para o fisioterapeuta japo-botafoguense Masasi, da Nossa Senhora de Copacabana, sapatear sobre o corpo e jogar para escanteio os estresses da existência.
Eu ando pelas ruas do Rio como se em solitária procissão pagã ao Deus da minha própria tranqüilidade. Nada peço em dádiva. De nenhum bueiro entupido faço reclame, de nenhuma mulata passando faço o elogio. Vago mudo, ensimesmado nos meus diademas. Chuto tampinhas.
Neste primeiro de março eu ando em louvor cívico ao fundador desta vila. Desço a Ladeira da Misericórdia ao estilo Estácio de Sá, vejo ao estilo Jota Efegê a Araci no MIS, e continuo andando assim como quem não quer nada, tamanco arrastando, com a sensação de que a cada encruzilhada que passo, em cada saravá que faço aos limões enrolados em fitas pretas nos alguidares, eu me absolvo. Alivio aos poucos o peso das pedras que se acumularam nos bolsos da minha existência, já tão fatigada, já tão mais fatiada que o presunto de Parma vendido na casa Pedro da Rua Buenos Aires.
Eu ando ao Deus dará, eu ando à mercê de minhas próprias alucinações e passo agora, como se um Estácio de Sá descobrisse tudo de novo, na esquina de Pedro Lessa com Rua México, ali mesmo onde uma vez Vinicius de Morais começou uma crônica ao ver Otto Lara Resende mineirando, com súbita vontade de tomar um Sustincau.
Eu ando na ponta dos cascos, em fuga ligeira das minhas aflições, e agora já estou na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre, onde Rubem Braga começou a acompanhar o vôo da borboleta amarela de seu clássico. Ele foi, como eu faço agora, atrás do etéreo sublime que dê sentido a tudo, e chegou até a esquina da Rio Branco, quando a borboleta amarela fez voltas na estátua da mulher nua que tem ali na escadaria da Biblioteca Nacional e, sem explicar o sentido da vida, porque aí não seria uma crônica, ela sumiu no mesmo imponderável urbano do Centro em que agora transito vago.
  Ando a esmo, ao mover das próprias pernas e ao embalo de uma imaginação às vezes doce, com o lado esquerdo do cérebro animado pelo refresco de groselha servido na Colombo, às vezes trêfego, massageado pela batida de coco do Tangará. É o homem sem rumo em busca de algo que lhe dê paradeiro. Tergiverso pela Rua Debret, desconverso na Araújo Porto Alegre. Vejo numa cadeira do Café Vermelhinho em frente à ABI o compositor Antonio Maria traçando uma Brahma Extra estupidamente gelada e também em brinde erguido ao fundador – mas eu, mesmo agradecido pela gentileza do convite de todos esses fantasmas, cá não posso ficar, pois me desmentiria.
 Eu ando hoje ao aniversário da cidade e, como o guarda noturno apitando na rua da infância, eu torço para que todos estejam em paz de criança dormindo, como na velha canção. Que o vento continue a soprar nos pilotis do MEC, a flor da meia noite beije os cabelos das meninas na Maria Angélica e a silhueta dos morros guarneça as sardinhas da Lagoa, a capivara da Córa e a nós, andarilhos de suas margens.
Porque hoje é primeiro de março, dia da fundação do carioca, me ponho ao caminho dos quarteirões do Centro como se fosse o Fantasma, o “Espírito que anda” dos quadrinhos, e de todas nossas glórias, nascidas primeiro aqui, eu sou São Jorge e guardião. Percorro o Beco das Sardinhas, o Quadrado Cultural da Praça XV,  para celebrar mudo, em oração interna, a glória de me movimentar com tudo isso ao derredor. São os azulejos de Portinari no Capanema, a costela com feijão manteiga do Escondidinho, a estante de fotografia da Da Vinci, o nu do Amoedo no MNBA, a cúpula dourada do Municipal, as amendoeiras da Praça Paris, o quem não chora não mama do Bola Preta – e, acima de tudo, o jeito manemolente da mulher da Rio Branco, longe do bairro em que mora, da família que a censura, largar o corpo de um lado para o outro e depois sorrir, songamonga, como se dissesse que a culpa é dessas pedrinhas portuguesas, bandidas!, que não deixam ninguém andar de salto alto sem rebolar espantos e estupores.
Eu ando pela cidade no dia dos seus 445 anos, mas o certo mesmo seria ficar de joelhos e agradecer.

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