Vocês estão prontos?


Depois de ‘Rio’, multidões vão querer conhecer ‘povo mais feliz do mundo’

Já havia a expectativa de fazer a melhor Copa do Mundo, a responsabilidade de arrebentar com o show de abertura dos Jogos Olímpicos, e eis que surge agora o osso duro de tornar realidade uma cidade de desenho animado, o cenário em 3D do povo mais feliz do mundo, onde as araras se amam, enfrentam os ecovilões e eternizam as mais belas espécies do viveiro terrestre.
Eu ficaria paralisado num divã se fosse o Rio que o mundo está esperando a partir do lindo filme de Carlos Saldanha. É a maior propaganda turística que alguma cidade já recebeu de Hollywood.
Ninguém — haja água de coco e biscoito Globo! — consegue ser tão espetacular assim na vida real.
Isso aqui era até anteontem o fim do mundo, o lugar onde os bandidos vinham gastar seus roubos de trem e levar a vida na flauta, uma civilização regida pela falta de leis e locupletada pela generosidade pagã de que não existe pecado do lado de baixo do Equador. Tudo que deixasse caixinha de 10% passava a ser da ordem dos negócios. Era o flying down to Rio, o lugar onde ninguém-está-vendo, o valhacouto de nazistas, o sexo barato, o deixa-que-digam. A selva onde os Simpsons precisaram lutar contra as cobras nas ruas.
Isso foi até ainda há pouco, quando o símbolo dessa civilização de meio bandidos e meio psicopatas tarados era o inglês Ronald Biggs,um ladrão transformado em pacato cidadão pelo clima tropical. O sujeito incorporou o gente boa nativo e deixava os Sex Pistols vomitarem
em seu portão de Santa Teresa.
Acima dos bandidos, até o noticiário de ontem pela manhã, só havia o poder dos mosquitos.
Isto aqui era a floresta inóspita, o lixão de Gramacho, o Tião Medonho, os coliformes fecais e o sequestro do embaixador americano. Grassava o golpe baixo, o coquetel molotov na vidraça do consulado, a diarreia, o piriri e a necessidade de os visitantes trazerem água de sua terra natal.
Os turistas que chegavam não podiam reclamar da falta de aviso. As favelas desabando estavam em todos os filmes.
De repente, fez-se aqui a Terra Prometida — e o carioca só não ouviu a mensagem dos seus pares internacionais porque está aos berros no celular. Ninguém passou um pano no pó dos móveis, e, no entanto, as visitas estão chegando. Esperam encontrar o povo mais lindo do mundo sambando com educação enquanto dá informações corretas de como se chegar à Lapa.
Haja roda de samba, açaí e frescobol à beira-mar!
Por muito menos pressão, o Ronaldo teve a convulsão na Copa da França. O cavalo Baloubet de Rouet refugou no último obstáculo da medalha de ouro olímpica.
"Rio", o filme, começa a correr o mundo esta semana e radicaliza a súbita expectativa mundial de que esta é a cidade onde vale a pena estar nesta década. Para passar um fim de semana de frente para a Praia de Copacabana, Obama mandou às favas a liturgia do cargo, encheu o Air Force One com as crianças, a sogra, a patroa, e veio se confessar aos pés do Cristo. A oposição se descabelou, mas Mr. President sobrevoava a Floresta da Tijuca. Não deu bola. Disse que a cidade era abençoada por Deus, bonita por natureza. Desde então, abraçado à nega Michelle, dorme com a camisa do Flamengo.
Enquanto isso, no resto do mundo, uma
suspeita de bomba retira às pressas três mil turistas da Torre Eiffel. Nova York continua o
estado de tensão de sempre. Noves fora Tóquio, pelos tremores, noves fora Roma, pela cafajestice do Berlusconi, não existe outro paradeiro para ser feliz em paz, sem o preconceito
careta das velhas civilizações. O melhor lugar do mundo é aqui, e até a Al Jazeera, na falta de tiroteios e traficantes a noticiar, fechou seu escritório.
De repente, sem que as ruas fossem pavimentadas, e os homens locais, educados para não abrir a braguilha em público, o Rio ganha da “Wallpaper” o título de cidade mais fascinante. O metrô vai daqui até ali, mas os gays não querem saber. Os aeroportos são pré-históricos, mas — haja aquela voz sexy arfando no alto-falante! — os jovens enchem os albergues de Ipanema.
O Rio de Janeiro agora é uma cidade cercada de ararinhas-azuis por todos os lados — e o mundo, empolgado por um filme sobre a experiência do homem conviver em harmonia com o seu ambiente, vai vestir milhões de bermudões floridos para matar a curiosidade. Será verdade ou as guerras do Oriente Médio, as tsunamis da Indonésia e a burrice do Fidel em Havana não deram outra opção?
Isso aqui era o fim do mundo, passou de uma hora para outra a ser o melhor da existência. “Cidade de Deus”, último registro cinematográfico que o planeta recebeu sobre o que se passava, foi deletado. Zé Galinha, Zé Pequeno e todos os seus colegas do Cantagalo e do Complexo do Alemão jazem mortos pelas UPPs civilizatórias do Beltrame.
Foram-se as gangues ontem à noite, reinamos blocos engraçados agora à tarde.
Não há mais bala perdida, viva a azeitona que ilumina o folclore-gourmet dos botequins cinco estrelas.
Toda essa esperança internacional, de fugir dos problemas de casa e ser feliz aqui, é benigna. Venham. O problema é que a natureza está pronta, mas falta combinar com os atores locais, os motoristas de táxi, os garçons, as atendentes nas lojas, os mijões, os entregadores de farmácia e afins.
Sem um bom divã de psicanálise municipal, sem recapeamento moral e educação sanitária,ninguém tem alta dessa ciclotimia. Sem trânsito civilizado, isso vai acabar engarrafando. Sem aeroporto, esses aviões vão para o fundo da baía.
Depois de “Rio” as multidões chegarão ainda mais urgentes na busca de um petisco de feijão maravilha e vão querer o ingresso de volta se esses ônibus continuarem enfurecidos, e esses meninos insistirem em jogar bolinha nos sinais. O cinema carioca é lindo, ninguém tem dúvida, mas — haja caipirinha e pandeiro de mulata! — é preciso colocar um lanterninha que zele pela civilização de todos e mostre os melhores lugares para a distinta plateia que vem aí.

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