Suspeitíssimo

Falava baixo, sorria sem som e fugia de gente que assobiava

Era um sujeito de ombros arqueados, cabelo cortado com máquina zero em casa para não ter que jogar conversa fora com o barbeiro. Se alguém assobiasse no elevador, saltava imediatamente e fazia o resto do percurso de escada. Tipo estranho. Detestava papo furado, tapinha nas costas e a gritaria macha nos bares sobre até que ponto o Flamengo aguentaria jogar o Brasileirão sem um atacante-atacante. Um homem de semblante fechado. Na escola apelidaram-no “Caramujo”, e isso fez com que ficasse mais para dentro ainda. Cresceu e, como ganhou olheiras profundas, passaram a chamá-lo “Coruja”. Tentou ser engraçado pela primeira vez na vida e colocou a imagem de uma na cristaleira da sala, mas a empregada, a  única que lhe passava o colarinho sem trincar as pontas, era de uma seita que tinha o bicho como entidade suprema. Trocou a coruja por um prato forrado de asas de borboleta onde aparecia numa foto com a mãe, recordação da viagem nos anos 60 ao Cristo Redentor. Quando diziam que as asas das borboletas eram de mau agouro, dava de ombros. Fazia ar de muxoxo, respirava fundo como se dissesse “nem aí”, expressão que evidentemente não usava, pois era de português castiço. Adorava a palavra “chichisbéu”, modo barroco de dizer  “galanteador”, que encontrou no poema “Carta aos puros”, de Vinicius de Moraes. A palavra comum, o senso comum, tudo lhe dava engulho incomum. Não queria nada com o mundo, mas os habitantes deste perseguiam-no com a mesma impaciência. Caçoavam. Era um sujeito com cara de poucos amigos, sempre macambúzio e ensimesmado. Usava fumo de luto em 2010. Um matusalém cheio de manias. Não brincava na Banda de Ipanema, embora morasse no bairro. Só saía de casa depois de tomar um gole d’água, como se as ruas que enfrentaria em seguida fossem um deserto, cheias de beduínos que negariam novos copos. O homem era desconfiado. À noite, chegava a levantar três vezes para confirmar se a porta que ele mesmo havia trancado estava realmente trancada. Complicado. Se não acreditava em si mesmo, despejava sobre o mundo o mesmo e constante olhar de esguelha. De manhã, quando as pessoas são tomadas por uma súbita civilidade, ele trocava de calçada se um estranho se aproximava com ares de quem ia dar “bom dia”. Estranhíssimo. Entrava mudo e saía calado. Não dava festa com som alto, nunca bateu boca com quem quer que fosse altas horas da madrugada, e pelo correio recebia só a “Piauí”. Homem metódico.  Dormia às dez, acordava às cinco, e às seis mergulhava na piscina do Flamengo para nadar mil metros, pois achava, devia achar, nunca confessou a ninguém, que corpo são é mente sã. Vivia no silêncio das suas águas, como se, não incomodando, não fosse ser incomodado — mas isso só realçava as tintas sobre sua índole diferente. De que planeta? As fraldas
das camisas iam sempre por dentro das calças e o sapato, um Doc Martens de sola grossa, havia sido comprado dez anos atrás numa viagem a Londres. Uma vez por ano ia a Brooks Brothers, em Nova York, e trazia dez calças azuis, todas iguais, e dez camisas brancas, também iguais. Estava pronto o guardaroupa. Ele queria ficar invisível. Um dia, sete da manhã, saiu de seus segredos. Atravessou a rua, tocou a porta do prédio vizinho e pediu que a senhora do 302, da janela de cara para a sua, fizesse parar o canto agudo, triste, do passarinho engaiolado. Que o levasse para o quarto dos fundos, pois o seu martelar canoro prejudicava a vida do outro lado da rua. Qualquer barulho o enfurecia, e como a vizinha se recusava a calar o passarinho, ele prestou queixa no serviço 1746. Um homem enigmático. Não deixava pistas no Facebook, no Orkut ou no Twitter, esses prontuários de vaidade. Sorria, sim, mas sem som. Jamais teve um frouxo de riso ou mostrou a intimidade daquele último dente. As emoções sob controle, nunca comentou com o porteiro os belos dias de sol de que tem sido farto este outono. Ninguém sabia também como ia o equilíbrio entre
decepções e satisfações da sua balança existencial. Um mistério no condomínio. Sempre de óculos escuros, carregava no chaveiro do cinto um canivete que usava para limpar as unhas. Se tatuasse alguma coisa nas costas seria “Mantenha distância”. Ficava no seu canto, taciturno. Não pendurava bandeira do Flamengo na janela, não tinha plástico no carro confessando ser sócio de qualquer Deus ou que gostaria de estar mergulhando. Zero de identidade. No fim do ano dizia estar viajando quando o lixeiro chegava com o livro de ouro.Tinha artrite na mão direita e passou a cumprimentar com ela fechada, deixando em alguns a impressão de ser maçom. Talvez fosse, talvez não. Discretamente, depois do cumprimento, borrifava spray higienizador na mão. Parecia o “puro” do poema do Vinicius. Só pegava na maçaneta da porta de banheiro público  com a mão envolvida numa toalha de papel. Sabia nome de bactérias oportunistas. Era o “Nowhere man” dos Beatles? Andou com uma barba bem comprida, mas um dia antes que começassem a chamá-lo de muçulmano, cortou. Era um túmulo. Nada a declarar. Não colocava flores no hall, nem pregava sino na porta quando se anunciava o Natal. Exibição nenhuma. No trabalho, a mesa destoava das outras, todas decoradas com fotos de filhos, cachorros e patroas. A dele, nua. Fazia o seu, desligava o computador e saía de mansinho por entre a fumaça do churrasco de gato que os colegas traçavam, felizes da vida, no botequim da esquina. Calava-se quieto nas suas interrogações, o que aumentava nos vizinhos a certeza de que escondia algo grave. Um dia alguém viu chegar pelo Correio um livro de Dalton Trevisan, que se supunha autografado pois vinha com o carimbo de Curitiba — mas isso também ficou sem confirmação. Teve namorada por pouco tempo. A moça vivia com dois gatos e os pelos soltos no ar lhe provocavam imediata crise de rinite. Era cheio de idiossincrasias. Numa lanchonete, só bebia
suco na temperatura ambiente e, ao contrário de todo mundo, que exige mais presunto e tomate, pedia o seu sanduíche com pouco recheio. Os garçons olhavam intrigados e registravam o mesmo que os outros. Cara esquisito. Poucos conheceram sua voz, e quem a ouvia pedia sempre que falasse mais alto. Sussurrava. Parecia não querer incomodar, e em troca sugeria que a Humanidade pagasse na mesma moeda — mas não teve sucesso. Era, definitivamente, um homem suspeito, desses que podem surgir na manchete do jornal de amanhã. Anda sumido. Aguardemos.

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