Gente de Ipanema – I


Uma galeria de anônimos e famosos do bairro

Não está acontecendo nada, é apenas Ipanema indo de um lado para o outro com seus anônimos e celebridades,e na frente da lanchonete Chaika, sempre por volta das 16h, aparece um sujeito de roupas discretas, ao estilo Richards, que se põe parado em meio ao fluxo e tem como tarefa tentar colocar na mão de quem passa o folheto milagroso de Mãe Valéria, a curandeira do bairro. O texto promete trazer o amor de volta em três dias, acabar com problemas financeiros, sexuais e também os relativos à queda de lavoura. Tudo em frases curtas, de uma eficiência comunicativa admirada por pelo menos um dos redatores da agência de publicidade no prédio do Fórum Ipanema. Ele chegou a fazer uma campanha de cosméticos inspirada nos folhetos, mas, mais por superstição do que por pruridos profissionais, mantém isso em segredo.
Ipanema é essa esquina da propaganda mítica dos poderes do novo xampu com o anúncio dos eternos poderes do extraordinário. Já foi uma garota no doce balanço a caminho o mar, agora tem tanta pressa na direção de uma das bocas do metrô da Praça General Osório que seus turistas e moradores, com os ouvidos trancados no iPod, passam batidos pelo empregado de Mãe Valéria. Dependendo do humor das pessoas para esticar a mão e pegar o folheto, o rapaz pode levar de uma a duas horas para descarregar seus 200 folhetos diários na imaginação de Ipanema. Algumas velhinhas, que logo em seguida vão entrar na Igreja de Nossa Senhora da Paz, pegam o folheto para abreviar a tarefa do rapaz e também não deixar que aquele culto de religião exótica se espalhe. Mecanicamente, sem ler, três passos depois, elas jogam a propaganda na lixeira abóbora da esquina com a Rua Joana Angélica.
Ipanema já foi a passarela de Duda Cavalcanti e outras dezenas de capas da “Manchete”, hoje é o bairro em que as pessoas se viram como podem para levar a vida, e, na areia da praia, em frente à Rua Farme de Amoedo, bate ponto todo os dias, a partir das oito horas, o faz-tudo esportivo que atende pelo nome de Mangueira. Ele é negro bem escuro, em parte pela origem étnica e em outra pelo acúmulo de sol durante todos esses anos, mas é mais facilmente reconhecido porque delimita sua área com uma dezena de raquetes fincadas em círculo na areia, como se fosse uma instalação de artes plásticas. Mangueira aluga raquetes. Aluga também sua perícia na prática do frescobol e fica batendo bola, ao preço de R$ 10 por hora, com quem estiver sozinho e quiser se exercitar no esporte. Cada vez que o parceiro bate bem na bola, Mangueira, com a elegância e o estilo generoso de quem faz de escritório a mesma areia onde Leila Diniz inventou um novo jogo de vida para a mulher — nesses momentos Mangueira solta exclamações do tipo “Beleza!” ou “Boa, garoto!”.
Ipanema é cheia de frases, milhares foram ditas nas reuniões aos sábados na casa aberta de Aníbal Machado, na Praça Nossa Senhora da Paz, outras tantas continuam sendo inventadas, e uma delas martela diariamente o crânio de Pelé, o funcionário que na Livraria da Travessa cuida do departamento de DVDs e CDs. Ele é o responsável pelo jazz tocando ao fundo na sobreloja, mas curte mesmo no íntimo a vontade de um dia escrever um livro para ser vendido nas prateleiras do primeiro andar. Pelé, que se assina Delson Poeta 86, espera apenas um intervalo de paz no espírito agitado das vendas para relaxar, colocar uma balada do John Coltrane no iPod e começar a escrever o livro de inspiração romântica baseadona própria vida, a busca nem sempre feliz da pessoa amada. O título, ele já tem pronto, seria “Alquimia da paixão”. A frase que o persegue há anos, sacada logo em seguida ao fim de uma relação de início muito feliz, é “Por um milésimo de um segundo, pensei que fosse amor”. Falta o resto, mas, enquanto isso não vem, ele troca informações com os escritores que entram na loja, vende para um o DVD de “Farrapo humano”, de Billy Wilder, para outro pergunta sobre o sentido do amor, e vai preparando num canto do cérebro,aos poucos, sem pressa, como na música lenta do Chet Baker que coloca na trilha da loja, as frases que faltam para encerrar sua “Alquimia”. Pelé parodia o Drummond de Andrade de “O amor chega tarde”. Ele garante que “O amor espera”.
Ipanema é um comprido corredor de academias de ginástica, o novo laboratório de onde saem suas musas antes formatadas apenas pela generosidade de Deus, mas a mulher mais reconhecida nas ruas do bairro não chama a atenção por glúteos esculpidos como se fossem arrebóis sublimes. Ana Maria Carvalho é uma senhora que fica postada à curiosidade pública todos os dias na esquina das ruas Vinicius de Moraes com Barão da Torre. Ela caminha cinco metros para a esquerda, volta outros tantos para a direita, não mais que isso, o que lhe confere quase a discrição de uma estátua. Ana foi a cantora do “Sérgio Mendes e o Brasil 66”, um minuto antes de o grupo vender tanto quanto os Beatles. Hoje passa o tempo falando sobre o choque dos planetas, o seu nascimento em uma estrela da Via Láctea e a velocidade da luz, tudo transmitido para sabe-se lá quem, num celular imaginário que ela equilibra na orelha enquanto os ombros seguram sacolas de plástico e outros parangolés. Parece que foi droga, parece que foi um trauma familiar, Ipanema ainda não chegou a um parecer definitivo. Ana é conhecida como a “Mulher de branco”, porque só vestiu essa cor durante duas décadas, mas agora usa azul, e é dessa cor o edifício onde mora com seus fantasmas na Rua Alberto de Campos. Nos próximos meses, será lançado um documentário sobre sua vida, nada que as ruas de Ipanema não saibam, mas na última cena Ana relembra os tempos de artista e canta sua música favorita, “Hi-Lili, hi-lo”, aquela que diz “Eu levo a vida cantando”, e ainda “O mundo gira depressa”, e também “Por isso é que sempre contente estou”.

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