Gente de Ipanema II


Nova galeria de anônimos e famosos do bairro




Ipanema é um bairro de personagens curiosos e de árvores mais ainda, todos quebrando galhos nesta imensa floresta que é a vida e indo em frente, numa fotossíntese de aparências e propósitos tão semelhantes que, na Rua Aníbal de Mendonça com Barão da Torre, você corre o risco de engasgar com o sorvete de iogurte ao não reconhecer se aquilo na esquina é uma árvore ou uma pessoa.
Chama-se “Clementina de Jesus”.
É uma escultura talhada numa acácia-amarela morta pela praga de um inseto que assolou o bairro sete anos atrás e destruiu cem árvores, alguns fícus, outras amendoeiras, muitas copas da imensa mata verde que cruza as ruas de traçado reto de Ipanema e dá sombra aos seus moradores esquentados.
“Clementina” não tem a cara da cantora. Parece mais um orixá, e foi desenhada por Andrea Brandani, o mesmo artista que homenageou Tom Jobim numa árvore na esquina de Barão da Torre com Farme de Amoedo, e, uma semana antes do carnaval, esculpiu um rinoceronte, uma girafa e um sapo numa encenação erótica-infantil a partir de outro tronco morto na Nascimento Silva.
No início, as pessoas não sabiam que as árvores estavam mortas e chamavam a polícia, mandavam Andrea descer delas. Hoje, há morador que organize protesto quando a companhia de limpeza urbana quer retirar o tronco esculpido para colocar uma planta viva no mesmo local.
Andrea vive da venda de seus quadros, espalhados em galerias internacionais. Apaixonou-se pelo jeitão de Ipanema, também por uma moradora do local, e pode ser visto abraçado às árvores, desenhando elefantes nos muros, conversando com Zezé Motta numa esquina da Vinicius, ou ainda conduzindo Tereza Rachel pela mão para que a veterana atriz, com dificuldade de andar, chegue a casa com segurança. Andrea solta os bichos pelas ruas do bairro e decora as árvores para que a floresta da boa vizinhança sobreviva às pragas do estresse moderno.
Ipanema tem uma barraqueira de praia chamada Dilma que grita “vai cadeira, doutor?” e um sujeito, sempre de cachimbo num canto da boca, cara de alemão, que fica encostado numa árvore da Visconde de Pirajá e assusta as crianças quando berra serviços
de câmbio em várias línguas.
É um emaranhado de gente inventando sons, o berço da bossa nova, a passarela do bloco “Vem ni mim que sou facinha”, mas nada se compara ao emaranhado de ruídos produzidos por Damião Experiença, um sujeito já entrado nos 70 anos e que faz ponto numa das portas do supermercado Zona Sul da esquina de Teixeira de Melo com Visconde de Pirajá. Parece um mendigo de barba enorme, parece um rastafári de cabelos na cintura, mas nem quem conhece Damião sabe dizer exatamente o que ele é. Não adianta perguntar ao próprio. Desconfiado, desconversará.
Damião diz que o verdadeiro Damião Experiença voltou ao Planeta Lamma, virou um fantasma, e que ele é apenas um imitador daquele ex-marinheiro, ex-rufião, que nos anos 70 foi um dos primeiros a gravar seus próprios discos e viver à margem das fábricas. Foram 34 LPs, que poderiam ser reduzidos a uma única faixa. Deles não se entende absolutamente nada, pois foram todos letrados segundo a língua oficial do tal Planeta Lamma, onde Damião acredita ter nascido. São só gritos desconexos. Encostado nas portas do supermercado, Damião fala baixo os seus disparates setentistas. Só fica aborrecido quando lhe pedem para mostrar numa carta celeste onde fica exatamente Lamma.
Ipanema é um planeta à parte, e um dos sonhos do humorista Marcelo Madureira,
que trabalha numa casa da Barão da Torre, é comprar uma barraca de flores na esquina da Aníbal com Visconde, sentar num tamborete e ficar com a cabeça balançando de um lado para o outro, suspirando, “quanta mulher gostosa, quanta mulher gostosa”, e assim passar o resto do seu tempo, analisando o trânsito feliz das caudas dos cometas.
Ipanema é um planeta de rota própria e um dos melhores lugares para observá- lo é da cobertura onde morou Rubem Braga, na Barão da Torre, uma fazenda ao estilo mineiro no décimo terceiro andar, e onde ainda estão seu filho, Roberto, e a nora, Maria do Carmo. Aquelas árvores são pouso seguro para as aves da região.
Outro dia mesmo, Do Carmo diz ter recebido a visita de um jovem galo marrom e mel, com a cauda ainda pequena e reta, que partira do galho de uma enorme árvore do morro do Cantagalo, logo aos fundos da cobertura, até a sua varanda. Mais tarde, ela soube
por um entregador do supermercado Zona Sul, morador no morro, que o galo é do vizinho dele — e ficaram horas assim, conversando como quem não quer nada, e falaram também sobre o bem-te-vi que aparece para comer ração de cachorro e, antes de ir embora, sempre procura Maria do Carmo no canto onde estiver da casa, como se desse um tchau, fique com Deus e obrigado.
Do Carmo e o entregador do supermercado ficaram jogando conversa fora, ao estilo
das crônicas de Rubem Braga, num papo sem pressa sobre os urubus e gaviões do bairro, sobre uma Ipanema que não vai ao caminho do mar, mas ao caminho do céu.

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