Gente de Ipanema III

                                     Eles estão mortos, mas os turistas não se convencem


Ipanema é um bairro cercado de turistas por todos os lados, e eles querem saber onde fica o bar em que costuma aparecer, e a que horas, o fantasma do escritor José Carlos de Oliveira contando a história do assalto. É um clássico das assombrações que tornaram Ipanema um cemitério à beira-mar plantado, um areal de espantos ouvidos em todas as línguas e pedindo, fazfavoire, em que museu fica a mesa da Churrascaria Plataforma onde Tom Jobim, Cartola e Vinicius de Moraes um dia se deitaram para curar um porre e foram fotografados para a eternidade por Evandro Teixeira?
São muitas perguntas sem respostas e neste momento, no que restou de uma cabine do bonde 13, na curva do Bar Vinte, alguém vindo de muito longe chupa um picolé da Sorveteria das Crianças que se liquefez há anos. O turista indaga onde se escondeu a modelo Duda Cavalcanti, a morena dos olhos d’água que melhor traduziu a Ipanema dos anos 60. O povo que veio de longe atrás da bossa nova quer saber onde se escuta uma boa mesa de papo furado, daquelas que leram nos livros sobre os bares Varanda ou Veloso.
De que madeira era a raquete com que Millôr Fernandes inventou o frescobol no Arpoador? Em que Museu da Imagem e do Surfe foi parar o pranchão louro do Arduíno Colasanti?
Os turistas andam em jipes do Jim das Selvas atrás dos mortos de Ipanema. Não se importam com as bananas que lhes são roubadas pelos macacos no Cantagalo e hoje, como estava sendo dito até que a Rose di Primo passasse na moto e desviasse o foco, os turistas querem ouvir mais uma vez o fantasma de Carlinhos de Oliveira, o cronista que inventou a noite de Ipanema, contar como os ladrões do bar trancaram os bêbados no banheiro, saquearam tudo e lá de dentro ouviu-se a voz dele, ou melhor, ainda ouve-se a voz de Carlinhos clamando “seu ladrão, pelo amor de Deus, leva os penduras”.
Carlinhos morreu em decorrência do uso do fígado como bomba de refinação industrial do álcool, o mesmo mal que acometeu o cidadão da nuvem ao lado, o jornalista gaúcho Tarso de Castro, que neste momento, o charme de sempre, explica aos turistas que lhe perseguem o fantasma como namorou Candice Bergen, a atriz mais bonita do mundo, numa quitinete do bairro.
Ipanema sempre foi para quem tem imaginação. Tarso, criador do “Pasquim”, tinha. Candice escreveu em sua biografia que no Brasil apaixonou-se por um ex-guerrilheiro — era possível ouvir os suspiros da atriz entre as vírgulas —, e ele, entre outras façanhas, formara na tropa de Che Guevara na tomada de Havana. Tarso era fogo, não tinha culpa se as mulheres
acreditavam e iam lhe caindo aos pés. Um dia chegou uma carta de Candice dizendo que estava tudo terminado, pois ela estava se casando com o diretor Louis Malle. Tarso, cavalheiro, enviou votos de boa sorte pelos Correios do subsolo da Visconde de Pirajá. Depois foi beber com os amigos. Disse, com um sorriso jocoso entredentes, “Dos Malles, o menor” — e tocou a vida com a musa da vez.
Ipanema é um bairro cercado pelas velas acesas a essas lendas e assombrações, algumas delas iluminando a areia do Castelinho onde está sentado agora, “no horário do câncer de pele”, o jornalista Sandro Moreira. A multidão de turistas filma, pergunta sobre o fim dos tatuís, se a Krishna aceita cartão na compra de um biquíni igual ao da Miriam Etz, e tenta convencer Sandro a atravessar a rua para fazer umas fotos no bar Mau Cheiro. Os
fantasmas que inventaram Ipanema pagam um preço alto pela ideia e não podem desencarnar do bairro sob o risco de levá-lo à falência. Pagam o carma posando para os turistas que trouxeram atrás de suas invenções.
Repórter de esportes do “Jornal do Brasil”, Sandro Moreira sabia que a vida real dos treinos e jogos era aborrecida demais e inventou o folclore dos passarinhos sobrevoando a cabeça de Garrincha, quando o coitado tinha apenas era muito álcool na cuca. O jornalista experimentava as histórias com a turma do Arpoador, depois publicava as melhores no “JB”. Foi antes do ombudsman, no tempo do Barbado, o cachorro boêmio que toda noite tomava sua tigela de chope no Jangadeiro. Sandro Moreira, craque na arte ipanemenha da invenção e da maneira charmosa de narrar as histórias, bolou também aquela de que, após a preleção do técnico sobre como acabar com o escrete russo, o grande Mané Garrincha pediu um aparte e perguntou: “Mas, professor, o senhor combinou isso com eles?”
Ipanema é uma miragem genial que o Patrimônio Histórico não conseguiu tombar, pois
era feita das conversas nas domingueiras de níbal Machado, de um coelho que o cartunista
Jaguar via em delirium tremens embaixo da mesa do Zeppelin e de uma salva de palmas que o jornalista Carlos Leonam puxou diante de um pôr do sol mais expressivo. Era o etéreo, esmanchou-se no ar. Um dia Vinicius suspirou: “Ah, queria comer um papo de anjo ao lado da mulher amada”. Rubem Braga retrucou: “Eu quero comer a mulher amada ao lado de um papo de anjo”. Ipanema era assim. Fluida. Os turistas precisam de fotos.
Eles querem saber onde ficam as Dunas da Gal, o consultório do psicanalista Eduardo Mascarenhas, as araras da Aniki Bobó e se ainda há ingressos para hoje da revista “Tem banana na banda”. Sobre o último tópico, eu peço sempre que, fazfavoire, perguntem à vedete, aquela moça que neste momento distribui flyers do espetáculo na calçada do Veloso, a única grávida que vai à praia de barrigão à mostra e, sem a bata do biquíni, escandaliza a moral dos tempos. É Leila Diniz. Quando o turista pergunta se ela é o verdadeiro espírito de Ipanema, Leila primeiro dá uma gargalhada. Depois, arruma a toalha na cabeça e, enquanto faz pose para as fotos que espocam em todos os sotaques, diz no seu português local: “Meu amigo, espírito de Ipanema é a *%#*@#*!!!”. 

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