O doce vampiro que renovou o sangue das redações
Zuenir Vetura/foto Ricardo Chaves |
Há quem tenha sorte no jogo; outros, no amor; e também quem encha a mão nos clichês para começar textos como este. Eu não me queixo. Ganha-se um beijo aqui, mais adiante uma voz muito doce diz “a culpa não é sua, sou eu” e, com toda a delicadeza, mas para nunca mais,bate a porta e sai de cena. Eu não me acanho. Não se pode ter tudo. Vai-se levando, como dizia o velho pai português aos que lhe perguntavam sobre os negócios do armazém. Um pé na frente, outro atrás. Eu não me avexo de abusar de todos esses lugares-comuns da emoção, pois Frank Sinatra roda ao fundo, me autoriza e consola a alma cantando “That’s life”. É a vida, tem de tudo e não se controlam os humores de quem maneja os cordões.
De tudo sei, no entanto, que os fados do destino sopravam absolutamente a favor quando, num dia perdido dos anos 1970, se abriu a porta da redação, como se fosse uma “Porta da Esperança” do Silvio Santos, e lá estava a figura alta do novo chefe, um jogador de basquete do Aterro do Flamengo chamado Zuenir Ventura, ou, como preferiam as cartas que começariam a chegar, atabalhoadas com aquele nome estranho, lá estava o “Sr. Zuvenir” ou ainda a “Sra. Zulvenir”.
O novo chefe era um dos inventores do espírito libertário da Ipanema dos anos 60 e estava a caráter. Usava um macacão de frentista de posto de gasolina, moda que lançava naquele momento. Completava o conjunto com um par de meias listradas, de muitas cores, talismã estilístico que nunca mais dispensaria, mesmo depois, quando inventou outras modas. A mais notável de todas, seguida com empolgação por uma geração de repórteres que pela vida toda tentaria acompanhar a evolução das cores de suas meias, foi a do jornalismo moderno.
Eu estava nessas redações, ungido pela sorte que acompanha goleiros e repórteres, e aqui dou testemunho de orgulho e gratidão.
Zuenir é a prova mais bem-humorada de que o jornalismo é uma espécie de vampirismo de dentes limpos. Aqui, morde-se tudo o que se move à frente, embora Zuenir, conhecido por sua elegante generosidade, tenha sempre o cuidado de em seguida oferecer o seu suculento pescoço como contrapartida.
Professor de Comunicação por muitos anos e dono de um radar sensível para a prática nobre da vampirologia, Mestre Zu sabia escolher as jugulares a serem atacadas. Sempre manteve os caninos presos aos pescoços jovens e tinha enorme capacidade em apontar, no meio da multidão de novatos que se formava à sua porta, os que dariam melhor sumo. Em nome da necessidade jornalística de renovar o fluxo sanguíneo, sugou deles o que podia e agora, quando faz 80 anos, eu ficaria na dúvida se Zuenir se comportaria melhor como membro da Academia Brasileira de Letras ou novo integrante do Restart.
Zuenir deixou pelas redações uma geração de pequenos vampiros, garotos e garotas orgulhosos de carregarem aqueles dois pontinhos de suas dentadas ao redor da jugular. Os mais vaidosos, para exibir a safra especial em que foi produzido o seu amor pelo jornalismo, tatuaram ZV ao redor dos furinhos. Nem precisava. É possível reconhecer esses zuvampiros por uma certa maneira com que mantêm o voo embicado para cima, equilibrando bom humor, ética, otimismo e zero de pose, tudo a serviço de uma sensibilidade que não perde tempo e dirige os caninos rumo à deliciosa carótida do que está acontecendo.
Com a falsa timidez de quem veio do interior de Além Paraíba e passou a adolescência pintando paredes em Nova Friburgo, o vampiro Zuenir tinha lá suas referências serem mordidas, mas nunca incentivou o preconceito. Se as hemoglobinas eram brancas, vermelhas ou azuis, não importava. Ele ensinou a chegar junto e, antes ou depois da dentada, não me lembro bem, fazer a pergunta que move a Humanidade dentro das redações:
— E aí, quais são as novidades?
Zuenir ganhou Prêmio Esso, entrevistou Prêmio Nobel, e tanto estava no réveillon intelectual de Heloisa Buarque de Hollanda, gênese para o livro “1968, o ano que não terminou”, como andava pelos becos de Vigário Geral para dar a sacada do “Cidade partida”, dois livros monumentais no estudo da sociologia carioca do final do século. Mas este é o homem público, o monstro sagrado reconhecido nos anais da ABI e o vencedor notório
das listas dos mais vendidos.
O outro Zuenir, das internas, neste momento, início da madrugada, está saindo com um rolo de barbante embaixo do braço para medir a praça em frente ao Monumento aos Mortos na Segunda Guerra, no Aterro. À tarde, o Papa rezou uma missa ali. Desconfiado dos cálculos da multidão feitos pela PM, Zuenir quer saber a metragem exata, multiplicar pelo número de pessoas que cabem num metro quadrado e depois fazer suas próprias contas.
Eu vi o jornalismo pelas medidas de Zuenir Ventura, e quem tem esse tipo de sorte deve vir a público mostrar o pescoço. Eu estava nessas redações em que ele passou distribuindo charme, bom humor e pautas criativas. A primeira página, o caderno de ideias, as
matérias-abobrinha, tudo lhe era jornalismo, dedicação, generosidade e provocação para que seus vampiros voassem num texto mais bonito. Eu estava lá e tenho pregado na parede mais nobre de minhas memórias o bilhete batido à máquina em que ele me pergunta “Quantos livros você leu este mês? Que filmes você viu? Por que não se inscreveu no curso do Hélio Silva?”.
A resposta que eu pudesse dar, sei agora, não tinha importância alguma. Fosse qual fosse, era preciso ter feito melhor — e é o que se tentou mais uma vez com esta crônica vestida em meias listradas. O pescoço envelheceu, mas ainda pulsa. Às ordens, grande mestre da luz jornalística.
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