‘Corro para criar’ (Revista Pulso, O Globo, 16/07/11)

[E não é que nosso cronista favorito é quase um maratonista? Aqui está o depoimento do jornalista sobre a corrida-nossa-de-cada-dia que o ajuda a manter o ritmo do texto]

Jornalista encontra na corrida o melhor exercício físico para enfrentar um computador por longas horas

          Corro para escrever. Poderia dar uma ótima frase de camiseta, de preferência patrocinada pela Nike, mas é o mantra que me faz atravessar tantos quilômetros por semana. Exagero, claro, listaria outros motivos que me fazem entrar no short-tênis-e-camiseta, mas fica para uma prova mais adiante. O escritor japonês Haruki Murakami diz que um cavalheiro não fala em público a respeito das mulheres com quem acabou um relacionamento, sobre quanto paga em impostos e como mantém a forma física. Estou à vontade porque, se os dois primeiros itens estão fora das preocupações desta revista, isto aqui também não é exatamente um artigo de culto ao corpo.
               Às favas com a capacidade aeróbica e a necessidade de emagrecer. Definitivamente, não é o caso. Corro porque a respiração melhora, o estresse evapora e a imaginação fica em condições de acelerar e ir embora. Corro porque em seguida vou ficar o dia inteiro sentado correndo atrás de palavrinhas como essas. Milhares delas. Dói. É um sofrimento procurá-las pelos desvãos do cérebro, botá-las para fora, preguiçosas que só, para que realizem seus números. É um esforço físico enorme. Corro para minorar as consequências desse esforço. O corpo fica o dia inteiro vergado sobre um computador, braços repetindo movimentos, o tórax tentando não desabar, o bumbum achatado na cadeira e a cabeça espremendo o frontal direito contra o esquerdo na tentativa desesperada de ligar o mixer interno das ideias e fazer suco das ideias. É uma batalha. Eu descobri que com a atividade física, e a corrida é apenas uma delas que eu pratico, o resultado final do trabalho de escrever sai melhor.
                Não é um uso exatamente esportivo. Corro para deixar corpo com mais disposição para o resto. Escrever, já que estamos em público e isso não contraria as leis de cavalheirismo prescritas por Murakami, é uma dessas medições confessáveis. Ao colocar o chip no solado do tênis, ajustar o relógio e sair acelerado pela Lagoa ou por essas provas que se multiplicam na cidade, não me move qualquer espírito best-seller de superação da dor, de debochar das limitações atléticas com que o meu DNA foi escalado. Vencer a mim mesmo, como está na moda nos livros de recondicionamento físico, não é a minha prova. Respeito aquela senhora que cruzou a faixa da maratona olímpica toda vergada, mas associo corrida com bem-estar e principalmente com a sensação de que ela me deixa em condições de, em seguida, começar a maratona de escrever quilômetros de laudas. É o que busco quando cumpro cada planilha que a Run and Fun, a academia de nome perfeito, me encarrega.
                   Correr também dá barato. A idade vai cada vez mais provecta e cobradora. As costas doem, o joelho emite sinais estranhos. Respeito-os e sigo em frente, de olho na minha planilha fundamental que é escrever com menos sofrimento. Não quero me jogar arfante como exemplo para a formação de gerações mais saudáveis e com vida útil mais comprida. Definitivamente, não sirvo como personagem para a galeria de atleta do mês da academia. Também não quero ser o campeão nem superar o vizinho. Corro porque acho que é o melhor exercício físico para manter o corpo em condições de, em seguida, com outro uniforme, enfrentar um computador por longas horas e tentar fazer com que as primeiras palavras sejam tão razoáveis quanto as últimas. Foi o que me fez correr.
                 Eu percebi que as primeiras linhas saíam com certa velocidade. Enquanto o trabalho avançava, as horas passavam, o cansaço ia tomando conta do texto e o fecho de ouro vinha sempre em forma de fecho de lata. Correr mantém o texto no mesmo padrão o tempo todo. É o que me move pelas pistas. Não corro para emagrecer, parar de fumar ou ficar com a batata da perna no shape da moda. Nada contra. Há quem tenha essas necessidades e a corrida é indicada. Eu passo. Ouço daqui as risadas começando a ecoar alto, mas escrever é uma atividade física extenuante. Dói muito no pescoço. Corro, da mesma maneira que me encharco de informação, livros, filmes, para tentar levar o barco profissional da melhor maneira.
                 De resto, é um dos bons prazeres da vida correr aqueles dias em que as passadas se encaixam ritmadas, os braços se envolvem na coordenação dos movimentos e o corpo parece uma máquina ajustada, reproduzindo por todo o percurso uma cadência sem erros. Gosto do silêncio que envolve a corrida, da necessidade de concentração que ela exige e da sensação de cérebro oxigenado no final do treino. Você está sozinho azeitando sua máquina para o objetivo que interessa. Ter o corpo e a mente coesos, sem que o cansaço de um boicote a necessidade de trabalho do outro. É por isso que eu corro. Coloco braços, pernas e cabeça para se ajustarem aos mesmos propósitos de boa coexistência. Faço com que eles se conheçam melhor e deixem de arengar uns contra os outros, como se fossem de turmas de ruas diferentes. Que saiam para a pista e mexam os ossos, outro elemento fundamental da turma.
                 Eu sigo atrás carregando os músculos para o ágape de esforço que não tem nada a ver com o best-seller espiritual do padre Marcelo. De vez em quando, nos dias em que todos esses elementos estão coesos e o pé bate no chão no ritmo certo, eu diria que a mente esvazia de tal jeito que deve ser um prazer parecido com o da elevação mística dos religiosos. Aqui não é a hóstia consagrada, é o suor que purifica. Enquanto corro penso na solução de um problema, tento uma ideia para algum projeto, observo as garças da Lagoa, a formação dos biguás vindo de São Conrado, nada se fixa por muito tempo, como se um quilômetro apagasse o outro. Sinto que o QI vai zerando, a máquina vai tendo aquele reboot fundamental que os técnicos da informática provocam para o reiniciar organizado dos trabalhos. Nessa hora, a mente pacificada, o corpo exercitado, você está pronto para continuar a corrida no teclado da redação. É o que eu vou fazer agora.

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