O repórter vive

                                           Obituário para um grande coleguinha

Foto da internet


Ele me falava todo dia sobre a profissão que abraçara há mais de 30 anos, a de um contador de histórias moderno, a do sujeito que ia ali na esquina e voltava com uma assombração dos novos tempos, uma lenda urbana, um causo de estupefação qualquer que no dia seguinte seria impresso no jornal da manhã. Era um repórter da velha escola, um apurador de notícias, e esta coluna cumpre o doloroso dever de informar aos que ainda não sabem.
O repórter da pesada, embora não tivesse mais que 60kg, morreu na semana passada num hospital do Rio. Deixou cada vez menos herdeiros. O repórter morto estava acostumado a pegar a pauta e ir até o local do crime falar com quem tivesse visto o entrevero, o momento exato em que o cidadão puxou da faca (com que roupa estava, disse alguma coisa?) e enfiou no fígado do vizinho (caiu em decúbito dorsal? namorava a mulher do algoz na ausência deste?). O repórter fez isso em Buenos Aires, em Santiago do Chile. Era um repórter de bloquinho na mão, mas sem aquela pena hollywoodiana cravada na fita do chapéu. Ele cuspia na cara do press-release, embora fosse educadíssimo, e, com jeito manso mas decidido, batia na porta de quem quer que fosse para ouvir o que tinha a declarar. “Me conta aí como foi que aconteceu”, pedia, e começava a anotar. Simples assim, mas há cada vez menos gente nessa pegada.
O repórter morto não morria de amores com a cara de assessores, por mais bonitinhas que elas fossem, de relações públicas, por mais generosas que se insinuassem. Muito menos curtia quem estivesse disposto a declarar sensaborias ou bravatas pelo telefone celular. Queria a real, as pulgas mil da geral, por mais que ela fosse canícula senegalesca e — ele adorava brincar com os clichês da profissão — passaporte para o nosocômio. Não se importava de gastar a sola do seu sapato Vulcabrás comprado na Polar, e se alguém não quisesse falar, ia até a outra rua, depois até o outro bairro, até que o garganta profunda da vez se dispusesse a abrir o jogo. Tinha paciência, essa arma dos repórteres vivos.
Ele me falava disso todo dia, de como as novas tecnologias haviam esfriado a profissão, mas não era de perder tempo com o inexorável da existência. Achava que por mais antediluvianos que fossem seus métodos de trabalhar uma matéria, com vagar, confirmando todas as brechas, a profissão de catar histórias e contá-las sobreviveria. Insistia num tipo de reportagem que fosse mais narrativa, que descrevesse o cenário, as palpitações sanguíneas do herói, as lágrimas da vítima. Contra a rapidez digital, o repórter, que não está mais aqui para explicar melhor o que ia por sua privilegiada cabeça, pensava em textos sem o facilitário do abre aspas, fecha aspas, frase de apoio, e depois novo jogo de aspas.
Ele gostava de conversar de olho no olho da fonte, perceber ao vivo, direto da voz do políticos, as idiossincrasias que lhes eram inerentes, ouvir essas patacoadas esquisitas da fina flor do lodo nacional lhes saindo da boca e não deixar qualquer fio solto. Contextualizar. Amarrar. Era sem preconceito de assuntos e quem o viu cobrindo escolas de samba na Sapucaí sabe. Foi ele quem morreu na semana passada, o repórter com os ombros arqueados pelo peso de muitas calandras, flãs e tampas de Remington que os repórteres de outras editorias gostavam de arremessar quando as bolinhas de papel acabavam. 
O repórter morto ouvia falar de todas as maravilhas da novas plataformas digitais e queria participar de todas, na boa, desde que ele fizesse o que não tinha remédio e nunca terá fim. Saciar a curiosidade humana. Os caciques poderiam colocá-lo na plataforma que decidissem, mas ele queria continuar suprindo a necessidade de todos em saber das novidades.
Era o que ele me perguntava todo dia. E aí, seu Joaquim, quais são as novidades? Era viciado nelas, as anfetaminas que o conduziam por pautas de todos os tipos. Não posava, não tirava onda e nem se pavoneava de velho mestre a que tudo de cor já sabe. O repórter morto tinha como adorno o mais bonito pingente que o jornalismo passa para a vida de quem lida com sua essência. Tudo que ele me falava todo dia eu acreditava, e assim seus pares, e assim seus leitores.
Ele fazia o de sempre, com o orgulho daqueles que estão em paz com a ordem natural das coisas e a escolha para abrir o lide. O repórter morto vivia de atirar perguntas, anotar respostas e prestar atenção. Básica eficiência. Rodava em alta definição todos os seus radares, sempre no fito único de fazer o seu humilde ofício. Narrar uma história com simplicidade, de preferência na ordem direta, pingando de vez em quando alguns salamaleques de estilo porque ninguém é de ferro e, afinal, ele não dormia sem ler uma página do Gay Talese.
Era um repórter vivo de um tipo cada vez mais raro da doença. Não queria ser editor, colunista, cronista ou qualquer desses títulos de nobreza que a falsa honraria jornalística vai colando no prontuário do RH para justificar o aumento de salário do profissional. Sabia que sem histórias para contar não se enche uma linha do calhamaço que a gráfica espera para rodar logo mais. Era um repórter com a pirâmide invertida na direção da boa prática do seu trabalho, que ele exercia com um tesão que levantava as bobinas da gráfica.
O repórter morto anotava a vida do seu tempo para colocar no grande jornal da capital, como se fosse um daqueles sujeitos que antes da imprensa iam narrando, de aldeia em aldeia, as últimas notícias. Ele já havia contado as de Washington DC. Andava ultimamente pelas bocadas da Rocinha. Buraco de rua, ordem do dia, valhacouto de bandido, tertúlia intelectual, bas-fond em Nova York ou chilique de celebridade. A tudo assistia sem afetação, movido pela pilha Eveready de todo repórter, que é a energia de assistir a vida pulsando o tempo todo à sua frente. Não havia tempo morto para o grande repórter vivo que continuará sendo o coleguinha José Meirelles Passos.


Aguarde, breve, o derradeiro capítulo do folhetim “Café na calçada”.

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