A índia marombada

                              Passeio-delírio pelo quarteirão art-déco de Copacabana

Foto de Ana Branco


Quando a vida está nublada e o aeroporto da existência parece que nunca mais vai abrir para nova decolagem, é aí que eu toco a campainha do Itahy, o edifício art-déco na Nossa Senhora de Copacabana. Peço ao porteiro para me deixar pisar no mosaico de cerâmica que imita no hall as ondas do mar de dois quarteirões adiante, o fabuloso verde-azul do mar da praia de Copacabana.
Há quem tome pílulas, há quem tatue felicidade no pulso direito. Quando estou perdido, meio sem saber por onde ir, eu busco me redirecionar com a bússola que me guia os passos, a beleza da cidade onde eu nasci e que não me canso de percorrer.
É aí que eu caminho descalço sobre as ondas cercadas de dourado do mar que Pedro Correa de Araújo desenhou no chão do Itahy. Na portaria do prédio, genuflexo, peço força à escultura da índia marombada. Ela parece ter acabado de malhar numa academia ao lado e como último exercício sustenta nos ombros todo o peso dos andares acima.
Há quem tome energéticos, outros entoam mantras. Eu caminho pelo quarteirão art-déco de Copacabana, uma das cenas mais bonitas do Rio, e vou pedindo a bênção a todos que passaram por ali.
O cronista Antonio Maria, sentado no Golden Room do Copacabana Palace, escreveu as mais belas crônicas sobre a noite do bairro, e numa delas saía do hotel pela portaria da Atlântica, atravessava dois quarteirões para a esquerda, subia 30 metros a Ronald de Carvalho e deixava sua namorada no hall do Petrônio, um monumento art-déco.
Na crônica, Maria não fala nada sobre o amarelo Siena e o preto belga dos mármores, mas, por mais que admire aquele desenho, não sou eu que vou criticar quem tem os olhos cheios apenas pelas curvas polidas de sua amada.
Eu vou andando assim como quem não quer nada, chupando uma casquinha imaginária da sorveteria Zero, fechada há muitas décadas, e dou graças a Deus quando vejo impávido, colosso, o lettering cinematográfico do Edifício Ceará na Avenida Copacabana. O art-déco ficou gravado nas ruas, apesar da ameaça poética que Rubem Braga faz em “Ai de ti, Copacabana”. Ele pede ao justiceiro sagrado que limpe do bairro as glórias e os pecados e que estremeça o corpo fino e cheio de mácula de tudo que vai por aqui, “desde o edifício Olinda até o Marimbás”.
Foi-se a boate Vogue devorada por um incêndio, foi-se o picadinho do Bec Fin devorado por outras fomes, e também a bossa nova das boates do Beco das Garrafas. O art-déco sobreviveu.
É um quarteirão de sonhos. Ainda dá para ver o Normandie passando ao largo da praia no final dos anos 1930, com as melindrosas acenando e a decoração do navio ficando de inspiração para a fachada dos prédios que seriam construídas em seguida, o Itaoca, o OK, joias da arquitetura carioca pelas quais eu agora passo, chutando minhas pedrinhas e cantarolando algum verso sobre a “princesinha do mar” na canção escrita por Braguinha, o homem na estátua na Princesa Isabel.
Quando eu passo na portaria do Ophir, na Ronald de Carvalho, vejo as máscaras carnavalescas desenhadas no portal de ferro do edifício e aí troco o disco, penso na marchinha acelerada de Caetano Veloso dizendo que as migalhas do avanço econômico, do poder atômico cairiam todas sobre Copacabana — e eu vibro contente por ter o quarteirão art-déco sobrevivido a essas migalhas também.
Gosto de bater perna por aqui sempre que me acomete algum mau fluido de que a elegância e a beleza estão perdidas. Passo a mão e peço sorte ao muiraquitã de cerâmica que adorna a fachada do Itaoca, na Duvivier. Passo o pé e peço saúde, seguindo um ritual que aprendi no terreiro suburbano de minha mãe, no casco da tartaruga na fachada do Itahy. Depois, encho os olhos e peço que só a beleza sirva de guia às minhas retinas tão cansadas, verso do copacabanense Carlos Drummond de Andrade, e varro com as meninas dos olhos, sempre excitadas quando a veem, a basket of flowers do Palacete Veiga, na Ronald de Carvalho.
Eu gosto de seguir em frente pelo deslumbrante quarteirão de joias art-déco da Viveiros de Castro, onde acaricio o pó de pedra do Juahy e peço aos deuses do seu mistério arquitetônico que transportem para meu dedo mindinho algum daqueles brilhos, há quase um século piscando na vida de nossa cidade.
Às vezes, quando a fome de deslumbramento se junta com a gastronômica, eu como um sushi no japonês, embora sempre me baixe uma dúvida se não devo andar mais um pouco e ir ao árabe na Ronald Carvalho, ao lado do Palacete São Paulo. Se continuo na Viveiros de Castro, passo o edifício América, o Caxias, e sigo adiante até a drogaria na esquina da Prado Júnior, só para ver se ainda anda por lá o farmacêutico Zé Medalha.
Ele usa, ou usava, no pescoço um colar de 30 quilos feito com os chaveiros que ganha dos fregueses. Talvez — não sei, estou pensando nisso agora, sentado aqui com um toucinho do céu na Colombo que fechou nos anos 1980 —, talvez, impressionado com tanta delicadeza art-déco em volta, o Zé, com o delírio de suas medalhas, tente se fazer de espelho e ofereça sua humilde contribuição para que a beleza insista e não desapareça jamais das ruas de Copacabana.

Comentários

  1. Eu soube do Ze das Medalhas outro dia. Tem um entregador de comida japonesa que conhece o Ze. Ele esta doente. O Ze, nao o entregador. Era uma figraça, em frente ao nunca assaz louvado Beco da Fome. Das pizzas da madrugada. Mesmo quando o Cervantes fechava . Sobrava o Beco da Fome e , se a larica fosse intoleravel, a carrocinha do Angu do Gomes, na Praca XV . Carlos Schlesinger

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