Lá no meu apê (11/03/05)

* o cronista está de férias e por isso reedito aqui uma crônica de 2005


Foto da internet

São as músicas que não ousam dizer seu nome, aquelas que você não tem coragem de citar numa roda de amigos, muito menos cantarolar nas páginas de um jornal da magnitude deste, mas elas estavam tocando no momento exato em que séculos atrás você levantou sua filha de 6 anos nos ombros, único jeito de fazer com que os olhinhos dela atravessassem a multidão e alcançassem lá na frente o pelotão dos Menudos cantando "Não se reprima" no campo do Vasco. Uma música dessas, vivida com uma cena daquelas, passa a ser imediatamente entronizada na sua galeria de inesquecíveis, tão linda em acordes quanto Maria Bethânia cantando "Anda Luzia", tão sugestiva quanto Nora Ney atacando "Menino grande", tão acachapante quanto Aracy Cortes trovejando esculachos em "Flor do lodo", cânones óbvios da música popular.

Eu pensei no maravilhoso hino adolescente dos Menudos porque acabei de ler "31 canções", mais uma lista de Nick Hornby com as pérolas do pop, cheia dos Beatles e dos Bob Dylan de sempre, e fiquei deblaterando solitário com os botões de madrepérola da minha camisa Brooks Brothers. Caraca! Como deve ser triste, e Deus que me poupe desse salário um dia, a vida dos críticos obrigados a reconhecer apenas as músicas boas e relevantes, todas prontinhas para fazer parte de um CD em que a Humanidade registra a dignidade de sua História.

Será que essa gente nunca bateu coxa enquanto Waldick Soriano cantava "Perfume de gardênia"?

Eu me solidarizo aqui com os autores dos LPs quebrados pelo Flávio Cavalcanti, com os CDs que ganham quadrado preto na coluna Discolândia do GLOBO e com mais aquela centena de calouros que cantaram "Coração de luto" no programa de Paulo Gracindo, todos impiedosamente gongados pelo Pato. Maldade. Preconceito. Saúdo com ênfase carinhosa as músicas que nunca farão parte dessas listas que saem nas revistas moderninhas com as "31 mais" a se levar para uma ilha deserta e fazerem clima especial ao abate cru de alguma Uma Thurman.

Brindo acima de tudo esses intérpretes que de vez em quando vão lá nos túneis mais fétidos dos sambas, metem a mão no lodo das baladas e voltam para esfregar no ouvido dos surdos que era ouro o que eles ainda há pouco julgavam apenas bosta — como Maria Bethânia está fazendo agora no show "Tempo tempo tempo tempo", no Canecão, com a espetacular "Você vai ficar na saudade", de Benito de Paula.

Um viva! para aquelas músicas que ninguém pediu para tocar mas estavam lá na hora agá. Se boas, se más, não me venham ao saco com esses pruridos intelectuais. Todas sublinhando as emoções escondidas quando você entrou no táxi, colocou pela primeira vez a mão sobre os ombros da moça e, no justo momento em que suas impressões digitais começavam a ser impressas no corpo dela, o rádio do carro abriu a voz do Latino cantando que hoje haveria festa lá no meu apê — e os dois, você e a moça, evidentemente pararam o que estavam fazendo para cair na gargalhada, certos de que "rolar bundalelê", por mais divertida que fosse a coisa, era verso improvável demais para compatibilizar a música-chiclete e a cena de carinho ainda tímido que ela sonorizava. O casal perguntou ao motorista se no CD-player ele não tinha Linda Batista cantando "Meu amor levou fermento", de Monsueto. Infelizmente, não.

Uma das desgraças culturais do Brasil recente é a do rádio sem democracia musical, o desaparecimento daquelas estações que tocavam todo tipo de música, da pseudobrega do Paulo Sérgio ao pseudopunk do Clash, e não só as do segmento de seu público específico, como é o padrão agora. O conceito de bom e mau gosto não existia em música popular — e aqui aproveito para acrescentar mais duas músicas à minha lista: "Soul Bossa Nova", com Quincy Jones, e "Garota Saint-Tropez", aquela do umbiguinho de fora feito laranja da Bahia, com Jorge Veiga. Formavam-se gerações menos preconceituosas, certas de que música era o que dava prazer quando encostava nos tímpanos secretos e não uma peça que se juntava ao terno Armani para formar imagem social de gosto elevado. Tolice. Farofa-fá. Bigorrilho. Tijolinho. Patapata. Coitados dos críticos que nunca tiveram uma história na vida que coubesse certinha numa letra-brega, num botão da blusa qualquer do Roberto Carlos. A propósito, uma música dele para a lista: "Com ar de moço bom".

Sugiro que se faça com os discos o mesmo que se faz pela existência, a necessidade de que ela toque o lado B também. Que se vá mais fundo nos sulcos dos LPs e nos desvãos da alma, no que não tem governo nem nunca terá. Depois, enxuga-se as mãos no pano de prato sujo das canções. Aos mais velhos, informa-se que neste momento está tocando "A white shade of pale", com Procol Harum, a música ciclâmen do "Música na passarela", da Rádio Tamoio. A música número 13 do "Peça bis pelo telefone", da Mayrink Veiga, é "Terezinha", com Wilson Simonal.

Aos jovens editores de livros eu sugiro — em pagamento basta colocarem na juke-box uma ficha para "Nada além", com Orlando Silva, e outra para "As tears go by", com Marianne Faithfull — que publiquem a biografia de algum herói moderno narrada a partir das canções que estavam rolando no momento xis e fundamental de suas vidas. Tenho certeza, pelo menos é assim no dia-a-dia das pessoas aqui ao lado, que nunca está tocando uma sonata de Bach quando o grande Diretor bate sua Divina claquete e grita "Valendo". Ninguém tem o controle do destino, muito menos é DJ de sua própria vida. Há sempre uma empregada pilotando o som na cozinha, um programador maluco de shopping tocando a música errada — e depois para sempre deliciosamente divertida ela será — na hora do bundalelê certo.

Dá para ouvir Nat 'King' Cole e em seguida o coração bater menudo, eis o som que rola lá no meu apê. Ligue o rádio no que a vida toca — e não se reprima.

Comentários