Canções de Amor (02.01.2005)

Waldick Soriano/ foto da internet


* o cronista está de férias e por isso republico este texto de 2005.

Canções de amor são ridículas, canções de amor só servem para aumentar a saudade daquela flor do lodo, mulher de baixos costumes que foi embora em algum momento de sua vida, e você espera, com sinceridade, que ela não volte, que ela não venha viver outra vez em seus braços, porque ela não presta, nenhuma delas presta contas ao fluxo do caixa, todas despudoradas, dadas, danadas, nasceram com o destino da lua e não vão viver só pra você nem pra ninguém. Harpia, aranha, perua, piranha. Aves daninhas beliscando o meu coração de galinha e leão.

Canções de amor não servem para nada, acendem o abajur lilás do sentimental que eu sou, malbarateiam as emoções, são cafonas como os beijos que me deste, servem apenas para te fazer ridículo, pagar o King Kong de andar com a boca molhada e para sempre marcada com o beijo de quem não é leal, alguém que bota muita banca mas felizmente você, por mais que trabalhe num, não é jornal. Canções de amor aporrinham, enchem o saco com a extravagância de sua sinceridade escorreita. Acabrunham, cabras vadias que são, o senso crítico. Pioram o texto, não leram João Cabral. Todas gordas. Rimam em ão, pobres taradas, bonecas de piche que sugam sangue, juntam meia dúzia de verbos ao redor de saudade, tristeza, ciúme, sonho, beijo, luar, estrela, madrugada, dor, traição, coração, e pedem que ela não te deixe, que a vagaba não te abandones, como se a vida fosse só isso. Estou fora de tamanho pundonor público. Não fica comigo esta noite, meu bem, que eu preciso dormir e esquecer os lábios que beijei, as mãos que afaguei e todas essas músicas ridículas e fundamentais.

Canções de amor fazem da nossa vida lupanar chinfrim onde Waldick Soriano está sempre cantando “Perfume de gardênia” e Dalva de Oliveira não pára de repetir que o amor é o ridículo da vida, como se isso agregasse leite, mel, polpa de manga e cabedal de conhecimento. É só barbárie primitiva de gritos desconexos. Canções de amor, atenção para o refrão, não prestam contas, caixa dois das verdades escondidas em nossos porões. São bonecas cobiçadas com lábios de veneno, sempre dando um mole, pegando sereno, um moreno, o que pintar. Doidas demais, eu daria a minha vida pra você não voltar.

Que o cotovelo das canções um dia doa no pâncreas tudo o que um dia você me doeu no osso. Que o rato roa toda a linha reta que vai do pescoço ao cóccix e siga adiante, insaciável, rumo ao que te é cru, pois vingança é a herança maior que papai me deixou.

Uma vez Luis Fernando Verissimo, num ônibus ao redor das atrações de Kobe, me disse que canções de amor não saem de moda e começou a cantarolar, em silêncio como lhe é de costume, a letra em que seu conterrâneo Lupicínio Rodrigues manda uma dessas mariposas frias que de tempos em tempos atravessam a vida dos homens cordatos, o Lupicínio deseja na canção de amor que uma dessas desgraçadas role como as pedras que rolam na estrada sem ter nunca cantinho de seu para poder descansar. Grande Lupi, grande Verissimo, Núbia Lafayette, Aracy Cortes, Isaurinha Garcia, Amália Rodrigues, Adelino Moreira, Anísio Silva, Orlando Dias, Odair José e que grandes sejam todos aqueles que acreditam, como eu, que essas canções são ordinárias, “Meu coração a teus pés”, “Meu pranto ninguém vê” e que por isso mesmo não saem de moda, infelizmente não nos sairão de perto jamais pois é do destino, outra palavrinha que elas adoram, é do martírio de todos querer que esta noite o mundo acabasse.

Ninguém tem nada com isso, esse hit-parade de fera ferida, gago apaixonado, coqueiro velho, pode ser apenas um cronista polindo no meio da calçada seu coração de pedrinhas portuguesas, mas a verdade é que, Odete, ouve o meu lamento, eu não tenho ouvido outra coisa desde nunca. Em algum lugar do meu fígado esquerdo tocava “Luto”, de Caetano Veloso, a canção mais linda e triste de 2005 na voz de Gal Costa, quando semana passada adentrei o Jardim Botânico e coloquei uma formiga violeta, a quem dei baixinho o nome de uma mulher xis, na boca de uma planta carnívora ipsílon. A coitada se debateu debalde. Tarada, à-toa, mesquinha, malandra. Juntei seu amor, seus trapinhos. Queimei tudo. Saiu do meu caminho.

Canções de amor, a estupidez delas não deixa ninguém ver, não levam a nada com seus diminutivos ridículos, sua falta de carinho, de beijinho e pacto social. Desagregam os espíritos pois esta lhes é da razão precípua. Amordaçam a sensatez, seviciam o jurisconsulto de qualquer honradez. Rimam bilis e minha grata servidão. Na toalha molhada que esquecem está sempre escrito um bom-dia a alguém que nunca é você. Ordinárias, marchem daqui.

Mesmo assim todo homem, todo lobisomem sabe a imensidão da fome de viver e confessar esses sentimentos esdrúxulos, paixões cruéis desenfreadas, mentiras sinceras que ora aqui professo nesse apartamento sempre à meia-luz. Não se faz favor nenhum em gostar de alguém, por isso não tenho ouvido nada além, nada além que essas ilusões desde que semana passada vi no cinema o filme “Música é perfume” e, não satisfeito, ando devagar porque já tive pressa, levo esse sorriso porque já chorei demais, não satisfeito revi todo dia o DVD “Tempo tempo tempo tempo”, tudo com a obra e graça de Maria Bethânia. As canções de amor com Bethânia são as mais ridículas de todas porque ela aprendeu com Dalva, com Ângela e Aracy de Almeida que não dá para ser de outro jeito. A vida só se dá para quem amou, para quem chorou, para quem viveu, e que em 2006 será da desordem natural das coisas aumentar a dose do formicida no guaraná e, coraçào pra fora, esquentar o ferro em brasa na maldição dos sentidos. Seremos todos ridículos, se Deus quiser.

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