Guia do Rio II

                            Foi-se a Majórica. Os restaurantes do Centro resistem

Restaurante Majorica/ foto da internet

O incêndio da churrascaria Majórica faz com que se torne urgente mais um capítulo ao guia anunciado semana passada, para turistas em busca de uma cidade diferente da que já visitaram outras vezes. Os restaurantes tradicionais estão pegando fogo, fechando por motivos de força maior ou, o que não é menos grave, mudando de cardápio.
O Rio é um balneário cercado de chefs estrelados por todos os cantos, uma plêiade genial de sudbracks, bronzes e troisgros, todos recomendados com cinco garfos, mas também cinco cifrões, para informar sobre o custo do banquete. Nada contra. Os chefs da cozinha contemporânea inventaram novas mesas, e, como está escrito no brasão da cidade, junto aos golfinhos que se beijam, quanto mais prazer melhor. Eu almoçaria mais barato e com gosto tipicamente local.
Daria uma chance aos restaurantes do Centro, onde os cardápios lembram as mesas domésticas de quando as mães educavam com palmada e cozinhavam com criatividade. Hoje, mães trabalham — e as novas gerações ganham os músculos possíveis com os sucedâneos do miojo.
A mesa carioca foi formada por uma cornucópia de paio africano, bacalhau português, espaguete italiano e farofa indígena. Misture tudo. É a argamassa, com um bife aqui e um ovo por cima, que cimentou o carioca. Benzida pelo feijão com arroz, ela aposta sem preconceito étnico numa sobreposição de camadas. São carros alegóricos de nossa civilização moderna, onde agora, como se pode reparar nos pratos da comida a quilo, cabe até sushi.
Os restaurantes do Centro são o último reduto de um tipo de cardápio em que essa dispersão gastronômica, tão na moda dos guias sofisticados de turismo, não é valorizada. Eles puxam para a comilança portuguesa. Não se fala petit gateau nos restaurantes da Rua do Mercado nem na Miguel Couto. Eles guardam a memória de itens clássicos, comuns no paladar carioca até meados do século passado. Receitas de cabritos e mocotós, galinhas cabidelas e fígados acebolados, delícias que hoje, na guerra santa ao colesterol, são consideradas politicamente incorretas. Saúde é coisa séria e cada um sabe da sua. De vez em quando, porém, turistas saem de casa para um intervalo de 30 dias sem lei, e é preciso abrir os sentidos ao delírio gustativo da rabada com agrião.
Vem por aqui, diria este novo capítulo do guia por um roteiro menos óbvio das gulas cariocas, eu sei onde ainda estão as últimas.
Para aumentar a sensação de descoberta de tesouro, esses restaurantes ficam quase todos escondidos em becos, como é o caso literalmente do Escondidinho, que funciona no Beco dos Barbeiros e serve como carro-chefe a costela com feijão manteiga. Já foi o restaurante de Jaguar e Sérgio Porto, quando os dois eram funcionários do Banco do Brasil, logo adiante. Depois passou para os garotos da euforia da Bolsa. Hoje é de um bando de senhores leais a um cardápio que conta a história da cidade.
São casas simples, de comida com o prato cheio, e por isso, infelizmente, quase deserto de mulheres. Um publicitário garante que nunca ninguém saiu daquelas mesas fartas para uma cama romântica. E olha que na Barão de São Felix, onde reina o cabrito do restaurante 28, está o motel Batuta. Reza a lenda que o nome foi dado em homenagem a um de seus frequentadores, pois no auge dos acontecimentos sua mulher só gritava “Batuta! Batuta!”.
Alguém gastronomicamente sério argumentaria que naquela região, atrás da Central do Brasil, não há maior batuta do que o paio (R$ 12) do “Seu Joia”, um restaurante, se é que ele não se incomoda de ser chamado assim, no final da Rua da Conceição. As toalhas são de papel, as paredes, forradas com jogadores do Botafogo e coelhas da Playboy. A comida, no entanto, é de família. Reproduz com fidelidade aqueles santos frangos e feijões comidos nos quintais da infância, obras clássicas que tiveram as receitas milagrosamente encontradas no Elizart, o fabuloso sebo da região.
O roteiro de restaurantes tradicionais do Centro já foi maior, e aqui ficam lágrimas furtivas para a perda do Penafiel e do Ficha. Os da Lapa estão nos guias tradicionais, com o filé a Oswaldo Aranha, do Cosmopolita, e o cabrito do Nova Capela. Eu recomendaria uma visita ao polo gastronômico da Miguel Couto, entre a Presidente Vargas e a igreja de Santa Rita, na Marechal Floriano. Às quintas-feiras serve-se um leitão à pururuca no Málaga e, logo ao lado, língua com purê de batata no Fim de Tarde. O resto do cardápio desses restaurantes é ossobuco, camarão com chuchu e ensopadinhos com diversas memórias afetivas.
Às sextas-feiras, atravessa-se a Marechal Floriano ao encontro do Morro da Conceição, onde ao pé instala-se o Beco das Sardinhas — e, então sim, depois de se conhecerem entre as mesas colocadas no meio da rua, num daqueles cenários que em Roma estariam nos cartões-postais, dezenas de casais saem dali direto para onde achar melhor o GPS de suas libidos.
De todos esses pratos, os únicos que trazem assinatura são os do português Joaquim Santos, chef com nome de colunista de jornal, que fez uma releitura sem frescura, de tamancos, dessas comidas tradicionais. Ele está por trás das panelas do Casual Retrô, na Rua do Mercado, e serve aos sábados um cabrito-mamão com batatas que não deixa ao turista outra opção. Ele deve atravessar dois quarteirões, se ajoelhar ao belíssimo altar restaurado da Antiga Sé da Primeira de Março e dar graças a Deus por estar no grande banquete — que ele continue assim por todos os séculos e amém — dos restaurantes do Centro do Rio. 

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