Rocinha

                        Uma corrida antropológica pelos becos da favela

Marcio Rodrigues/Fotocom.net


Era uma corrida antropológica, um mergulho de tênis Nike nas profundezas de um Rio ainda há pouco secreto e que agora, cercado de policiais por todos os lados, se abria para dois mil corredores. Nada a ver com a São Silvestre. Na corrida de SP, você testa os limites do corpo, o condicionamento físico a que chegou com treinos e cuidados de saúde. Aqui o buraco é mais embaixo, pode estar escondido numa poça de esgoto. Por cima da cabeça também não aparecem os edifícios charmosos da maratona de Nova York, mas a muralha de fios de luz, de telefone, de TV a cabo, os famosos gatos, e é preciso cuidado para não roçar a careca e cortar a internet do morro.
No meio disso tudo há gente que não acaba mais, 500 mil habitantes, todos precisando respirar na rua o ar que suas casas abafadas não deixam — e dos botequins multidões de homens levantam copos de cerveja para, barrigudos, zombeteiros, saudarem o esforço dos corredores.
A inscrição ficou em 40 pratas, dava direito a uma medalha de lata a quem completasse o percurso. Tenho feito essas provas, que se reproduzem pelo Rio como uma versão saudável da micareta baiana. Por causa da multidão de inscritos elas são mais divertidas do que atléticas. Desta vez, quando eu vesti a camiseta e o calção, senti como se partisse para uma aula de sociologia urbana na PUC, logo ao lado, depois do túnel.
Estamos começando os cinco quilômetros pelos becos e vielas da Rocinha, uma prova para celebrar a pacificação da favela. Não é uma pista clássica. Na primeira curva, de dentro da primeira birosca, sai um cachorro, caim, caim, ganindo um passa-fora do dono da tendinha. Havia um cheiro de sardinha preparada na gordura, uma fumaça de mau gosto para narinas de fora do morro, mas que em seguida seria pura nostalgia. Ladeira acima, esgoto ao ar livre, o perfume da banha passaria a ser tão delicado como o de qualquer sabonete do banheiro em que a Scarlett Johansson se fotografou de costas.
Enfim, era uma corrida de quilometragem social em meio a dezenas de igrejas evangélicas ocupadas com a corrida pela salvação. Eu corria do jeito que o terreno permitia. Feliz por não me desviar mais de balas perdidas, mas abanando as moscas das cacas do caminho. Dei um breque nos passos, pulei de banda por cima do cachorro babucho e deixei que ele se mandasse em paz para um canto protegido. Na volta, se não deixasse meu coração arfando sozinho na subida do Laboriaux, eu lhe pagaria uma sardinha frita.
Correr é um exercício de concentração, uma tentativa de se conectar à mecânica simples da vida. Os tênis trouxeram confortos, mas ainda é o homem em seus básicos instintos de superação. Ele bota o corpo em movimento e se ouve conversando com quem lhe é mais íntimo, as peças da sua maravilhosa engrenagem biológica. Como vai você, meu joelho? Como andam por aí, batimentos do coração?
Eu corro para organizar as ideias e instalar na vida mais um método de disciplina que me possa ajudar na hora de escrever. Na prova pela Rocinha profunda, os corredores passando em becos miseráveis com tênis de até mil reais, esse papo-cabeça foi deixado de lado. Ali tudo é lição de sobrevivência. Não dá para ouvir qualquer voz interior quando se está desviando de cachorros, fios, valas e policiais armados com fuzis imensos.
Você só escuta a gritaria dos funks, e todos eles em algum momento gritam “Toma! Toma!”. Não há silêncio no morro que permita conversar com ninguém, muito menos com os sofisticados fluxos internos da pulsação. O prazer dos pés marcando o ritmo na batida com o chão, sinal musical de uma máquina perfeita e pronta para voar, fica adiado para a próxima corrida. Na Rocinha, hoje não tem poesia, só sebo nas canelas e perna-pra-quete-quero. Corredores e moradores são movidos pela urgência de não tropeçar nas armadilhas do percurso. Há subidas e descidas o tempo todo. Reina o espírito olímpico, vencer é detalhe. O importante é subir a estrada da Gávea, descer a Via Ápia, não escorregar no xixi que escapa pelos canos, pular o cadáver de um gato esmagado pela moto e chegar vivo, gato escaldado, ao pódio sugestivamente plantado ao lado do Fashion Mall.
É uma corrida sócio-econômica de atletas que gastam mais de um salário mínimo em  academia, personal, energéticos e roupas. Eles passam, com variados níveis de constrangimento, na soleira de casas que não têm aquela grana sequer para gastar na alimentação básica. Da janela de um casebre, quase uma caverna, uma moça filma com uma câmera HD a dificuldade que todos eles têm, é quase um cross-country, em pular uma vala de esgotos.
A moça fez o dela. Foi à luta, trabalhou e diverte-se com o que conseguiu comprar. Grita “bom dia” para os corredores, e o cronista entre eles, reencontrando-se subitamente com os espasmos de seu pensamento, crê ser um cumprimento de esperança. Logo atrás, na correria também, virão os homens da Saúde Pública — e, assim como a UPP encerrou com a violência do tráfico, eles acabarão com o cocô no meio da rua.
A vida, é o que eu aprendo correndo, só tem sentido assim. Uma corrida leva à outra. 

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