Olha quem voltou

                        Adamastor, o homem puro, não quer saber de bloco de carnaval

IMGs de O Globo


Adamastor não dava as caras faz tempo e quando eu esbarrei em sua estressada e impoluta figura, sempre na esquina de Santa Clara com Barata Ribeiro, ele foi logo me explicando o que ocorrera. O homem detesta calor. Mais do que o termômetro lá em cima, ele teme que a qualquer momento vá encontrar algum conhecido que começará a conversa com um “mas que calor, hein, seu Adamastor!”.
Uma vez o Adamastor se trancou um fim de semana inteiro dentro da geladeira de peles da Casa Canadá, que ficava ali na Sete de Setembro. Só saiu de lá quando a Adalgisa Colombo chegou para o desfile de segunda-feira e pôs-se aos berros, como se tivesse visto a barata do Kafka naquele homem em cuecas, lendo o Placar Moral que o Otelo Caçador escrevia no GLOBO.
Adamastor, para quem ainda não conhece, é o estranho homem puro, um poço até aqui de sinceridade, que me foi apresentado pelo cronista Antonio Maria, também coleguinha aqui do GLOBO nos anos 1950. Maria sacava o sujeito da máquina de escrever sempre que lhe baixava sentimento mais sombrio diante de seus pares humanos, e olhe que ele era autor do melancólico “Ninguém me ama/ninguém me quer”. Quando não havia réstia de sol em sua alma púrpura, o cronista colocava o Adamastor em cena, sem papas na língua, para fazer o trabalho sujo.
Sobrava, por exemplo, para os homens que frequentavam academias de dança, um modismo da época, 60 anos antes das opiniões politicamente corretas. “O homem, a não ser que seja de balé, precisa dançar apenas direitinho”, dizia Maria pela voz de Adamastor. Orgulhava- se da franqueza. Não gostava exatamente de tudo que os outros não gostavam e tinham medo de dizer. Era cru. “Os cegos devem ser ajudados a atravessar a rua, mas, convenhamos, são intrigantes.”
Quando encontrei Adamastor em Copacabana, tive vontade de dizer que ele continuava o mesmo, mas brequei a tempo, na lembrança de que o homem tem convulsões diante desses clichês que regem as conversas no meio da rua. Já foi um mulherengo contumaz, e eu só uso essas palavras para tentar ressoar o autêntico “Verbo Adamastor”, mas anda indignado até com as fêmeas que antes o alubravam. Perguntou (eu ia escrever “me perguntou”, mas imediatamente senti o catiripapo do Adamastor no cangote) — perguntou se eu me lembrava da Jayne Mansfield. Era uma atriz americana peituda que veio ao Rio no carnaval de 1959 e acabou com as pepônias de fora porque um fotógrafo, no baile do Municipal, puxou-lhe o laço que firmava o decote. Adamastor detestava a opulência de Mansfield e agora movia sua ira santa contra a reprodução de milhares delas na figura da siliconizada.
Como lhe é de costume, ele sincerizou o que achava e eu só ia fazendo com a cabeça que sim, porque ninguém é louco de contrariar o Adamastor. O homem tinha suas regras severas até para gostar de mulher, e me explicou como elas devem ser naquele exato momento de suas anatomias. O peito esquerdo deveria caber na mão direita do homem — e fez, muito sério, a mão direita côncava — e o peito direito, na esquerda. As polegadas que sobrassem dessa medição, concluiu, deveriam ser descontadas na nota a se dar à candidata.
Definitivamente, o homem é idiossincrático, uma palavra que certamente aprovaria, assim como todos esses advérbios, porque ele tem os ouvidos chegados numa admiração cívica aos polissílabos. Detesta o macaquear nacional em busca das palavras curtas do inglês, logo nós que temos tesouros linguísticos como um “inconstitucionalissimamente” ou “pluripartidarismo”. Um homem se mede pelas palavras, vocifera nas seções de cartas dos leitores nos jornais, e elas devem ribombar de terno de giz e prendedor de gravata no pavilhão auricular do próximo.
Além do calor em si, Adamastor detesta o conversório banal que envolve o assunto — “a patroa já subiu para a serra com as crianças e sexta-feira é a minha vez” — e o seu inverso, o papo-cabeça dos que ele chama de “mastigadores de jornal”. São cidadãos que depois de comentar quão inclemente vai a temperatura começam a falar com as mesmas vírgulas e os verbos pomposos das informações lidas no matutino da capital sobre o desequilíbrio ecológico, o El Niño e outros fait-divers climatológicos. Adamastor sofre ao perceber que nem todos lhe são espelho na busca da franqueza, de falar exclusivamente o que vai à cabeça. De segunda mão, diz, só aquela — e repete malicioso o gesto com a mão esquerda de segurar o peito direito. Depois pediu desculpas pelo jeito cafajeste de voltar ao assunto. Mas é que sofre de véspera com as fotos das siliconizadas que vêm aí com o carnaval.
Adamastor, claro, faz as mais sérias restrições ao Reinado de Momo, ao Tríduo Momesco, e tudo mais de clichê que envolve o carnaval. Acha que essas aglomerações só servem mesmo é para espalhar epidemias de gripe e, naquele dia em que o encontrei na esquina de Santa Clara com Barata Ribeiro, estavajusto saindo da farmácia com um arsenal de vitamina C. Vai passar os dias da festa trancado em casa, organizando a coleção de Estampas Eucalol, mas acha que todo cuidado é pouco.
No último carnaval precisou sair para comprar uma bisnaga e cruzou na esquina com um bloco. Garante que eram milhares de pessoas, todas carregando nas mãos uma latinha azul e nos pés havaianas melancólicas. A cena de início lhe lembrou as procissões da infância, no interior de Minas. Depois, associou o silêncio, a falta de cantoria que percebeu no bloco, com o cortejo fúnebre a que no passado assistira de sua mãe querida. Adamastor tirou o bico quentinho da bisnaga e, balançando negativamente a cabeça diante da multidão que se arrastava, mordiscou o naco ali mesmo no meio da rua. Depois, trancou-se em casa — definitivamente convencido de que esse negócio de carnaval era uma coisa muito triste.

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