Manual de redação / 2

         A via de regra, a barriga do Cristo que morreu enforcado e a voz rouca das ruas. Evite-as


Imgs retirada de O Globo


Calandra. Costumava ser uma brincadeira do primeiro dia de estágio na redação. O chefe de reportagem pedia ao estagiário que fosse até a oficina e pegasse a calandra. Era um cilindro de aço, impossível de ser carregado, mas o jovem só saberia disso quando todos os funcionários da oficina caíssem na gargalhada. Um trote. Acabou, da mesma maneira que não se escreve mais “a voz rouca das ruas” ou “estrepitosa vaia”. Carlinhos de Oliveira descreveu a partir desse pedido da calandra o romance de uma estagiária e um gráfico, esquentando a pena para mais tarde lançar seu clássico “Um novo animal na floresta”, a história do cruzamento sexosocial entre a patricinha e o traficante no Rio dos anos 1970. As redações eram mais ingênuas. Morria-se de rir com o trote de pedir ao estagiário que ligasse para o Zoológico e chamasse o Dr. Leão.

Jacaré. É o obituário feito com antecedência, para ser publicado só quando o personagem morrer. A origem é óbvia. Jacaré fica com a boca aberta no rio esperando o peixe passar. O jacaré do jornal espera o quase-morto falecer. Uma repórter do “Jornal do Brasil” foi até o Méier entrevistar o escritor Agripino Greco, já com 90 anos. Era um “jacaré”, mas evidentemente ela é que se fez de morta. Disse ao grande escritor satírico que era um perfil. Ao final da entrevista, Agripino, sempre tão mordaz nas críticas à literatura brasileira, pediu ingênuo: “Me avisa quando sair, minha filha, porque eu só leio o ‘Diário de Notícias’”. A repórter do “JB” ficou penalizada, disse “hã-hã”, com aquela carinha sapeca que elas sempre tiveram, mas não deu detalhes, não abriu a macaca.

 Macaca. É um pequeno texto destacado ao final da matéria, com dados complementares de serviço, coisas como horário, preço do ingresso etc. Um extra informativo. Pode vir cercado por fios ou em negrito, tendo surgido daí a sua preconceituosa definição. Dizem que a origem foi na reforma do “Jornal do Brasil”, no final dos anos 1950, pois a turma do concretismo gostava de mexer com essas variáveis tipográficas. Enfim, foi há muito tempo, quando os jornalistas brincavam de se jogar bolinhas de papel e o fechamento das sextas-feiras era regado a uísque servido entre as mesas. Uma noite, no mesmo “JB”, a repórter chegou da rua, encharcada pelo temporal de verão, e trocou de blusa no meio da redação. 

Sutiã. Jornalistas passam a maior parte do dia trancados num prédio, e ali ficam, mergulhados com exclusividade na vida real. Ninguém viaja na maionese. De vez em quando, para não terem uma overdose de factual, gostam de dar asas à imaginação, praticar nas internas um jornalismo redbull. Foi aí que um deles resolveu chamar de sutiã, algo que não via há tempos, a linha informativa que antecede e explica, segura um título. A expressão, depois que as mulheres tomaram conta das redações, caiu respeitosamente em desuso. Hoje, chamamna de antetítulo. O próximo passo é acabar com a barriga.

Barriga. Uma notícia equivocada. Um jornal de São Paulo publicou uma barriga sobre Jesus Cristo e obrigou a redação no dia seguinte a uma errata antológica:  Diferentemente do dito aqui, Cristo não morreu enforcado, morreu na cruz”. Jornalistas cometem muitas barrigas. Escrevem todos os dias, às vezes sem tempo para uma apuração mais rigorosa, e seria natural que cometessem outras mais ainda. Infelizmente, relutam em reconhecê-las. Quase 40 anos atrás, o então jovem redator deste Manual informou ao distinto público que seria colocado abaixo o restaurante Assyrius, no Teatro Municipal. Barriga. Era o Bar Assirius, na mesma Avenida Rio Branco, mas uma espelunca fétida e cheia de moscas na Praça Mauá.

Descalabro. É uma daquelas palavras riscadas da pauta em prol (risque esta também) de um jornalismo mais objetivo e menos sensacionalista. Ninguém morre mais crivado de balas. Dá-se o número exato delas. Com essas expressões (saudades do “tresloucado gesto”, do “nosocômio”) foise também o ponto de exclamação, aquele raio que tentava colocar eletricidade no título de matérias. O jornalista Tutty Vasques, defensor do jornalismo retrô, cunhou  a expressão “Ô raça!!”, às vezes com dois, às vezes com cinco pontos de espanto, dependendo muito do humor que lhe vai nas veias. Regras existem para serem subvertidas, mas este breve Manual de Redação recomenda pudor com as que existem. Um dia, o copidesque de um vespertino, assoberbado de trabalho, ainda teve disposição para gritar com o autor do texto que estava lendo: “Ô fulano, via de regra lá em casa é outra coisa”. Evite. 

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