Manual de redação

                    Para a estagiária do calcanhar Victoria’s Secret

Img da internet


No texto sobre o livro “Os imperfeccionistas”, de Tom Rachman, foram usadas, sem a explicação devida, palavras do jargão jornalístico. Aqui, um breve glossário.
• Seboso. Era o caderno coletivo de telefones. Cada repórter escrevia ali o número de alguma autoridade, algum entrevistado importante, e pode-se imaginar como o uso por tantas mãos suadas deixava o coitado. O seboso, como todo o resto da Humanidade, foi escorraçado para o terminal de texto. Poucos o consultam, poucos acrescentam números. O seboso digital, além de limpinho, ficou mais pobre. Somos todos amigos no Facebook, todos se cutucando o tempo
todo, mas telefone de fonte é coisa para se guardar no lado esquerdo do peito.
•Fonte. Alguém que passa uma informação. Não à toa, o hino dos jornalistas executado quando o pauteiro da manhã abre os trabalhos, todos os editores com a mão direita espalmada no peito, é “Aquarela do Brasil”. Ali estão os versos “Essas fontes murmurantes, onde mato a minha sede”. Jornalistas preservam as fontes, não no sentido ambientalista do fenômeno, mas fontes que falem pelos cotovelos. Nas noites de pescoção, quando a lua vem brincar, elas valem ouro.
•Pescoção. Às sextas-feiras, as redações concluem duas edições, a de sábado e a de domingo. É uma longa jornada, tão longa quanto o pescoço da Danuza Leão, mulher do tycoon da imprensa Samuel Wainer. Em homenagem a ela teria surgido a expressão. A confirmar. É normal um editor, ali pelas 22h de sexta-feira, usar o gesto desesperado de alguém cortando a garganta para pedir que o repórter acelere o trabalho, pois é noite de pescoção. Estagiárias não iniciadas no jargão se assustam com a cena.
•Estagiárias. A mais famosa foi a do calcanhar sujo. Identificada por Nelson Rodrigues, era a neohippie do final dos anos 1960, saída dos bancos da PUC e abusando das sandálias para mostrar desapego às coisas materiais. As redações eram territórios masculinos, uma tendência hoje em declínio da mesma maneira que os calcanhares sujos (as estagiárias do on-line usam creme da Victoria’s Secret nos seus) e a pirâmide invertida.
•Pirâmide invertida. A notícia deve começar com o mais importante e ir definhando de interesse, facilitando, na falta de espaço, o corte pelo pé. A base da história, ao contrário das pirâmides tradicionais, ficaria no topo. Hoje, com os repórteres escrevendo dentro do tamanho final, há mais liberdade e pode-se guardar alguma pepita informativa para o fecho de ouro. A pirâmide invertida foi também um tipo de depilação feminina em voga nos tempos do “Diário Carioca”. Hoje — e desta vez a internet não tem culpa — está substituída pelo bigodinho de Hitler ou pista de pouso, assunto que, mesmo em torno da máquina de café, deve permanecer em off.
•Off the record. É quando não se identifica a origem da notícia. Cuidado com o off. Em “Os imperfeccionistas” um jornalista, usando o expediente da fonte em off, inventa que a França vai mandar uma tropa para a Faixa de Gaza. Nem as milícias do Rio atiram tanto em desafetos quanto as fontes em off. O sujeito se esconde no anonimato e, de trás da moita, atira a esmo. Privilegie quem fala e mostra a cara.
•Nariz de cera. É uma introdução prolixa. Num texto sobre Eike Batista, o redator começa: “Quando Walt Disney criou o Tio Patinhas, o mundo estava em guerra”. É do tempo em que jornalistas queriam ser escritores — hoje querem ter um milhão de amigos no Facebook — e caprichavam na erudição para mostrar que estavam ali redigindo notícias por acaso, tratava-se apenas de uma necessidade pontual, para pagar o supermercado. Em breve, era o sonho generalizado, ele publicaria o grande romance de sua geração, um calhamaço que já ia às 300 páginas na gaveta do mesão do copy.
•Mesão do copydesk. Otto Lara, Cony, Ferreira Gullar, esses craques já se sentaram ao mesão comprido para onde iam os textos produzidos na redação ou chegados pelas agências.
O copidesque arrumava as vírgulas, ajeitava as frases na ordem direta. “Penteava” a matéria, expressão que teria surgido de “vai pentear macaco”, pois alguns textos são de lascar o cano e arrepiar o ombudsman.
•Ombudsman. O melhor emprego do mundo. O jornal está nas bancas, o sangue dos repórteres e editores escondido por trás de todas aquelas fotos, infográficos e textos. Aí vem o ombudsman, de banho tomado, na mesa do café da manhã de seu duplex, e ri da incompetência que campeia na redação. Ele explica aos coitados, 12 horas depois da guerra terminada, como teria sido melhor fazê-la de outro jeito. “Por que não temos isso?”, grita o ombudsman seu mantra, com o dedo na primeira página do concorrente.
•Dedo-duro. É o aviso no final da matéria informando que há mais informações sobre aquele assunto na internet ou num texto adiante no próprio jornal. Dizem que a expressão chegou ao jornalismo nos anos 1970, quando os jornais tinham censores nas redações e, dizem, a paranoia serviria para nomear até os recursos editoriais. Dizem. Como se escreve no jornalismo democrático de hoje, há controvérsias. Procure saber em outras fontes murmurantes. Paute com carinho a estagiária do calcanhar Victoria’s Secret e peça que na volta da apuração ela traga a calandra. (Veja “calandra” e outros termos na próxima semana). 

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