Carioca, o filme

Um roteiro para o Barretão documentar o povo que vai receber a Copa e as Olimpíadas


Imgs da internet

1 Os praieiros. A praia é o grande quintal da cidade, já que o dos subúrbios foi tomado pela churrasqueira e a piscina de plástico. Documentar no filme como o carioca entra no mar, dando uma cambalhota espalhafatosa, e depois sai com uma balançada de cabeça, que já causou dano a diversos cérebros para tirar o excesso de água. Fazer um infográfico do movimento. Filmar o comportamento de um grupo de meninas no momento em que elas fazem um travesseirinho de areia para que o bumbum, deitado ao sol, se pareça com mais um dos incríveis morros redondos no horizonte da cidade. Ouvir um nutricionista e explicar a coerência espontânea do carioca ao escolher, com acerto científico, o biscoito de polvilho doce para acompanhar o mate-limão e o salgado para a cerveja. Descobrir o número exato de letras “a” que grita o vendedor do “aaaaaabacaxi”.
2. Os gringos. Explicar como eles se enturmam, vestem a havaiana, e não querem mais sair daqui. Apresentar a história da embaixatriz francesa que, inspirada na saga de Ronald Biggs, sempre atracado com uma mulata em Santa Teresa, largou o marido e foi morar com gato e cachorro numa casa da Ilha da Gigoia, na Barra. Filmar um dia na vida dela. Está lançando um
livro com as aventuras que viveu na cidade. Saber o roteiro dos ônibus da Zona Sul é apenas uma de suas façanhas. Perguntar-lhe, de batepronto, onde é o ponto final do 409 na Zona Sul.
A embaixatriz tem humor. Aproveitar e perguntar se ela sabe o que é “de bate-pronto”.
3. Os mentirosos do bem. Está em todo manual da carioquice que não se deve levar a sério o “apareça lá em casa”, mas é preciso explicar didaticamente no filme os diversos tempos da frase, para que o convidado não perca uma grande oportunidade. No Rio nem tudo é verdade, mas nem tudo é mentira também. “A gente precisa se ver”, “me liga”, “a gente vai se falando” são frases perigosas. Costumam ser “mentiras de carioca”, expressão que já deu até um doce de padaria, mas vai que a morena fala sério!? Filmar gente de todas as classes repetindo os tais mantras. Entrevistar fonoaudiólogos. Ouvir o povo na rua e aplicar em suas falas o voice program que a Microsoft lançou para avaliar a temperatura das emoções na forma narrativa.
4. As mulheres. Documentar com imagens do arquivo da Biblioteca Nacional os protótipos que caracterizam a espécie. Tem a garota carioca suingue sangue bom, a mulata que não está no mapa, a estagiária do calcanhar sujo, a certinha do Lalau, a uva, a cachorra, a melindrosa, a chave de cadeia, a gostosa, a sem noção, a Maria Chuteira, a nega do cabelo duro e a garota de Ipanema. Fazer um perfil detalhado de Leila Diniz e terminar o bloco reproduzindo a frase da famosa entrevista do “Pasquim” (no arquivo do Jaguar tem), quando ela diz: “um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”. Brincar na edição com a imagem do Paulinho, o macaco bagunceiro do Zoo.
5. Os saudosistas. Como o carioca se relaciona com seu passado e sente saudade, uma palavra que ele se orgulha de ter nascido aqui. Ele suspira pela perda do frapê de coco do Bar Simpatia, acha que o futebol nunca mais terá o mesmo calor sem a presença do geraldino no Maracanã, e já houve um vereador que assumiu como plataforma a reconstrução em acrílico de um Palácio Monroe no mesmo lugar onde foi destruído pelos militares. Recolher no YouTube cenas do Rio antigo, que costumam ter milhares de acessos e comentários do tipo “Perdemos um paraíso”. Entrevistar moradores de Santa Teresa, que andam revoltados com o fim do estribo do bonde e contrastar suas falas com os bondes do carnaval dos anos 1940, quando os estribos vinham repletos de marmanjos fantasiados de mulher ou bebê chorão. De contraponto para a exaltação nostálgica, colocar imagens do novo Hotel Glória e do Maracanã. Deixar claro que ficarão melhores que outrora foram.
6. Os malandros. Explicar de onde surgiu o culto ao descompromisso, a eterna vontade que em todos reside de largar o emprego, vestir a camisa listrada e sair por aí. Arriscar uma sociologia sobre o encontro, na rede de dormir, do português com as escravas. Contar a vida de Madame Satã, o mais clássico de todos os malandros, e percorrer as praias lotadas durante os dias da semana. Reproduzir a história real do brasileiro que explicava ao turista amigo serem estudantes todos aqueles banhistas na praia. E o turista questionou de volta: “Mas não estudam?”. Visitar um salão de bilhar na Praça Tiradentes e perguntar aos senhores presentes se Chico Buarque estava certo ao dizer que o malandro agora é aquele candidato a malandro federal.
7. Os paqueras. Filmar com uma câmera escondidao exibicionismo amoroso pelas ruas da cidade. Abrir o bloco com um bando de operários na calçada da obra. Refestelados à sesta do almoço, eles disparam “gostosa” para as que assim forem reconhecidas por seus paladares de gente do povo. Ouvir mulheres que digam ter largado imediatamente a psicanálise depois de ouvir um galanteio desses. Acompanhar um rapaz e uma moça num bloco de carnaval e contabilizar quantos outros rapazes e moças eles beijam. Visitar o mirante do Pasmado, onde casais atracados dentro dos carros resgatam com mãos e perdigotos a tradição da corrida de submarino, expulsa da orla pela explosão imobiliária em mais um crime contra a memória carioca.
8. Os folclóricos. Filmar os tipos de rua que, de tanto saírem na coluna Gente Boa, transformaram- se em personagens de peças publicitárias sobre a cidade, como o gari Sorriso, a mulher de branco de Ipanema, o cara que faz embaixadinha no calçadão do Leblon, o taxista com o carro cheio de dálmatas, o aposentado discursando no vagão do metrô sobre a pouca vergonha que campeia nos órgãos públicos... O primeiro de todos deve ser o saxofonista do Metrô da Carioca. Ele toca “New York, New York” a cada 15 minutos. Pedir a ele que troque o hit do Sinatra por “Valsa de uma cidade”, de Ismael Neto e Antonio Maria. Usar a música, executada por ele, como fundo para as outras entrevistas. Não esquecer de mostrar as pinturas do profeta Gentileza no entorno da rodoviária. Sugerir ao prefeito que se acrescente à bandeira da cidade uma faixa, a ser segurada pelos dois golfinhos que já estão lá, com a frase “Gentileza gera gentileza”. (Continua)

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