Pedacinhos do céu

                                         O renascimento de Gal e a morte de Ademilde

Montagem com fotos retiradas da internet


Eu fiquei mais chocado ainda porque dias antes tinha visto, no pequeno palco da Miranda, na Lagoa, o renascimento de Gal Costa, a cantora que um dia vestiu uma bata psicodélica e, enquanto todas as outras cantavam baixinho, canções que se queriam de bom gosto ou de apoio aos que não gostavam da ditadura, um dia ela colocou a tal bata com um desenho de espelhos na frente e saiu aos gritos, berros mesmo, de que era preciso estar atento e forte, morda-se a morte e todos os seus medos decorrentes.
O que me chocou ainda mais na morte de Ademilde Fonseca, uma das cantoras mais divertidas da história da música brasileira, foi o contraste e a proximidade dessas emoções. Gal Costa estava desaparecida. Talvez a melhor cantora brasileira de todos os tempos, pela sua capacidade de unir técnica e emoção, o que Elis nem sempre conseguia, talvez por ter sido uma espécie de porta-voz dos baianos para toda a grande produção do tropicalismo, Gal tinha deixado uma multidão de órfãos. Resolvera cuidar do filho na Bahia depois de sucessivos discos e shows em que os fãs pulavam as faixas, chegavam mais perto do palco, e não conseguiam ver nela o umbigo da capa do “Índia” nem sentir o aroma do milho verde, o fado que ela, antropofágica, misturou em seu tabuleiro de delícias.
O que me chocou mais nessa história da morte da Ademilde Fonseca, que parecia tão
formosa aos 91 anos, e foi Deus quem a fez tão formosa, como na canção do Mário Reis, o que me impressionou deveras, que é como se chamava aquele empresário do Cauby — o que me impressionou nessa história toda foi o fato de a morte de Ademilde ter ocorrido no mesmo
período de uma semana em que Gal, reconduzida pelas mãos de Caetano, foi colocada de novo num palco e assombrou a plateia da Miranda com a constatação de que estava acontecendo, aos olhos de todos, um milagre anunciativo da Semana Santa logo a seguir.
Gal tinha resolvido descer da sagrada colina baiana. Peregrinou pelos estúdios com um CD experimental, “Recanto”, onde em nenhum momento solta a voz na estrada. E graças a Deus para quem procurava vozes femininas pela Lapa e não encontrava, e graças a Deus para quem procurava vozes femininas nas modernetes paulistas, mas achava que era tudo muito posado — graças a Deus, Gal reapareceu absolutamente sublime, ousada, cantando vanguarda, cantando baba, mandando a voz lá em cima ou sussurrando lá embaixo, no santo sepulcro da alma brasileira, num show espetacular.
Eu estava digerindo a alegria de ver que o nome dela ainda é Gal, curtindo o prazer de reencontrá-la de novo na cidade com aquela cara linda ao sol do meio-dia, uma fruta gogoia a se chupar todinha, essas músicas com que ela encheu o espaço azul de que falava a música da Carmen Miranda sobre as cantoras de rádio — eu ainda estava nessa alegria de contar o milagre, assim, correndo, sem muita pontuação, sôfrego para falar da felicidade de um país recuperar uma cantora que já se dava por perdida em Amaralina, na Praça Castro Alves ou qualquer outro desses endereços baianos que a gente não sabe bem onde é mas aprendeu a cantar — eu estava, assim, nesse pique feliz do renascimento de Gal Costa quando chegou a notícia da morte da Ademilde Fonseca, aquela que o Cesar de Alencar anunciava de sacanagem como Ademillus Fonseca, em tributo aos seus peitos fartos.
Eu gostava muito de suas canções, principalmente esses chorinhos ligeiros em que ela colocava as palavras para correr sem que as sílabas tropeçassem nas cordas do cavaquinho, sem que a língua se embaralhasse com as estrelas do céu da boca, coisas de humor deslumbrante como “Inconstitucionalissimamente”, uma palavra que ela cantava letra por letra e ainda sorria, procurando tornar simpática a sua voz microfônica — se vocês me permitem citar mais uma música de seu grande repertório.
Enfim, eu fiquei assim, pasmo, inconstitucionalissimamente impressionado em saber da morte da Ademilde Fonseca no justo momento em que Gal renascia, ainda mais porque esta tinha no repertório um hit da outra, o chorinho “Teco-teco”, mais uma deliciosa  síntese, como o “Cantoras do rádio”, que os letristas da MPB fazem dessas mulheres que nos enfeitiçam, de noite embalam os sonhos, de manhã vêm nos acordar, e tornam a vida nacional com mais sentido e beleza.
A letra do “Teco-teco”, gravada por Ademilde e Gal em décadas diferentes, conta a vida de uma mulher que se descobre cantora depois da infância metida em jogos de bola de gude. Sempre muito folgazã, em toda parte encontrava um fã, e quando havia festa na capela do lugar era a primeira a cantar. A letra diz no final: “E hoje a minha grande alegria/ é cantar com cortesia/ para o povo do Brasil”.
Eu tinha me programado para retribuir alegre a cortesia, saudar a ressurreição de Gal, que não à toa colocou no repertório do show o “Ressuscita-me”, de Caetano e Maiakovski, mas o destino também compõe seus sambinhas sincopados e eis-me aqui aproveitando o ensejo para rimar meu último desejo e deixar  em Ademilde, a cantora que botou voz no choro, o beijo deste brasileirinho.
Ela sucedeu Carmen Miranda na brejeirice, foi das grandes. Deixou a lembrança de um tempo em que as cantoras tinham uma personalidade indisfarçável e ninguém, nem mesmo se já tivesse passado do terceiro drinque na boate Vogue, confundiria Aracy de Almeida com Linda Batista — e hoje eu duvido quem, na terceira caipirinha no Vivo Rio, separe Marisa Monte de Monique Kessous.
Havia menos cantoras, porque não era lá trabalho muito digno para a moral de mulher na época, mas todas reconhecíveis ao primeiro trinado. A elas, minhas cortesia e gratidão. Cantavam dramas próprios, como Dalva, estilos de vida, como Nara, infelicidades profundas, como Maysa, ou pedacinhos do céu, como Ademilde — todas reunindo, num grande abraço, os corações de norte a sul.
Gal saberá mantê-las. 

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