Carioca, o filme/3


Mais personagens para o documentário


Ilustração Claudio Duarte/O Globo


15. Os gastrônomos. O poeta Olavo Bilac deixou uma impressionante coleção de cardápios com a relação das comilanças de que participou no início do século passado. Algumas comidas, assim como o pincenê e o durmabem, desapareceram. O filme não deve lamentar perdas como o estrogonofe, o frapê de coco do Bar Simpatia ou o lapskaus do Ficha. Não sentir saudades. Um filme sobre a gente carioca, todos na busca do jacaré perfeito, deve acreditar que mais adiante vem uma onda melhor. Mostrar sem preconceito as comidas que argamassaram esta civilização, reconstruindo um dos cardápios de Bilac, e mais a feijoada que
Chico Buarque cantou num samba e o macarrão que Monarco cantou em outro. Perguntar ao glutão Carlos Lessa que prato em cartaz nos restaurantes (o cabrito do Capela, o feijão do bar do Seu Joia, a picanha do Braseiro, o bolinho do Aconchego) melhor sintetiza a comida da cidade. Entrevistar o cineasta Sergio Bloch, autor de um livro sobre comida de rua, enquanto ele come uma sopa de ervilha na carrocinha da esquina de Dona Mariana com Voluntários. Não esquecer, sob o risco de o filme ficar sem as proteções devidas, de escarafunchar, com a permissão por escrito do terreiro mais próximo, a comida posta para os santos no despachódromo do Alto da Boa Vista.
16. Os da classe C. É um personagem novo no país inteiro, mas os que povoam o Rio são glorificados em novelas e outros programas de TV. O filme pode concentrar seus representantes (donas de salão de beleza negra são fundamentais) em torno do churrasco num condomínio na Vila Valqueire, uma confraternização, cheia de conversas sobre viagens a Buenos Aires, regada ao som de aparelhagem de som potente o suficiente para mostrar ao vizinho que a turma está podendo. Ouvir o jornalista Artur Xexéo, autor de artigo defendendo os hábitos da velha classe C, e antagonizá- lo com a manicure do programa “Esquenta”. Entre os hábitos da nova classe C está o de tomar chope com gosto de vinho e orar contrita diante de um telão de plasma, 52 polegadas, onde passa o DVD com uma missa do Padre Marcelo Rossi em 3D. Tratar, evidentemente, com todo o respeito e não tomar partido. Nosso filme, assim como todo o país, também está de olho firme e mão grande no faturamento da classe C.
17. Os hedonistas. Na primeira cena deste segmento, perguntar ao marombeiro que estiver fazendo barra num aparelho da Farme se ele se considera como tal, um hedonista. Ouvir de corredores na areia, surfistas e jogadores de beach tênis a definição para hedonista e depois compará- las com a do Aurélio. Concentrar neste bloco os  personagens devotados ao prazer que não couberam nos demais. Garotas de programa, enólogos, observadores de pássaros no Jardim Botânico. Passar uma noite no clube de swing, cheio de funcionários públicos, ao lado do hospital Copa D’Or, em Copacabana. Ir ao clube de mulheres fumadoras de charuto no Esch Café, da Dias Ferreira, e destacar o depoimento da mais poderosa e bonita de todas, a empresária Gisela MacLaren. De tarde, ver o pôr do sol com os nudistas da Praia do Abricó. Registrar a oração que eles fazem em um pequeno altar, numa gruta, à vedete Luz Del Fuego, cultora do gênero nos anos 50. Perguntar a todos se Antonio Maria, se Mariozinho de Oliveira, se o Comandante Edu, todos do Clube dos Cafajestes (eles faziam roleta paulista nos cruzamentos de Copa, todos mamados de caju amigo), se os cafajestes não foram nossos primeiros hedonistas tropicais.
18. Os artistas. O Rio de Janeiro é uma cidade cercada de artistas, projacs, polos de cinema e produtoras do Barretão por todos os lados. Começar esta parte do filme com um batalhão de paparazzi correndo atrás de algum artista que entra apressado com seu novo amor num restaurante japonês da Dias Ferreira.Mostrar em seguida o fotógrafo enviando, de um computador que ele abre ali mesmo na rua, a foto para o site de fofoca. O filme não deve abordar os artistas, nem mesmo nas infindáveis sessões de tapete vermelho feitas para lançar filmes. Deixá-los em paz. Registrar de longe a Juliana Paes despindo a canga no Pepê, sem que ninguém cariocamente lhe dê atenção. Cronometrar as passadas aceleradas de Chico Buarque no calçadão do Leblon e pedir a um editor de Caras que descreva o conhecido truque do compositor. Ele usa sempre o mesmo calção e camiseta para desestimular os fotógrafos, que não encontrariam editores interessados em comprar sempre a mesma foto. Fazer um dos tours organizados pela cidade em torno de acontecimentos culturais célebres. Há caravanas às esquinas da Tijuca onde nasceu a Jovem Guarda e outras pelos becos das garrafas em que bebeu a bossa nova. Entrevistar a caravana em frente ao Projac. Seus participantes pagam caro para esperar, com a câmera do celular armada, que o artista da novela chegue de carro, abaixe o vidro e cumprimente o vigilante na cancela.
19. Os amantes. Esta parte do documentário precisa ser feita com a delicadeza necessária para o filme não receber censura acima de 18. A primeira cena deve estar coalhada de anúncios de garotas de programa. A câmera vai se afastando aos poucos e deixa ver que estava dentro de um orelhão na esquina de Prado Júnior com Barata Ribeiro. Pegar leve na excitação aos sentidos. Para economizar na produção é possível fazer todo esse capítulo em Copacabana. É a capital brasileira do sexo. Ir, no máximo, até o Morro do Pasmado e filmar a fila noturna de carros embaçados, onde casais dedicam-se à nostalgia da corrida de submarino. Lembrar que o nome teve origem em Copacabana, nos anos 30, quando os carros eram postos de frente para o mar e os casais d’antanho aproveitavam- se do vazio ao redor para fazer o mesmo que os casais continuam fazendo hoje. O bairro respira sexo desde a sua origem. Registrar que a igrejinha de N.S. de Copacabana, que ficava ao lado do forte de Copacabana, é do mesmo período a que os historiadores creditam o aparecimento do boudoir de uma prostituta francesa cuja história deverá ser narrada pelo historiador Milton Teixeira. Investigar, se lenda, realidade ou assombração, a existência de um prostíbulo de mulheres anãs na República do Peru, citado por João Antônio num conto, e outro de normalistas, presente numa história de Nelson Rodrigues, na Constante Ramos. Fazer o perfil da stripper Angel, a sensação do peep-show na parede colada — tão Rio de Janeiro! — à sacristia da igreja da Serzedelo Corrêa. 

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