Zuenir e Verissimo passeiam ao redor de suas netas usando a mesma estupefação
com que já observaram o Rio de Janeiro
Faltou dizer, na
bela material que Betty Orsini fez no Ela com Zuenir Ventura e Verissimo, os
dois cercados de suas netas, Alice e Lucinda, que a “crônica do vovô” é um novo
subgênero literário inventado por aqueles mestres.
A
crônica brasileira é uma árvore frondosa,com galhos para todos os lados, um
gênero que, pelo estilo manemolente, transformou senuma espécie de jabuticaba
literária, pois é coisa que só dá aqui.
Existe
a “crônica pedestre”, por exemplo, e João do Rio foi o primeiro a praticá-la.
No início do século XX, ele saía de alguma livraria da Rua do Ouvidor, parava
num café da Avenida Central, ouvia umas lorotas, recebia uns passes de um
caboclo no Morro de Santo Antonio, e ia beber num pardieiro da Rua do Lavradio.
No caminho, recolhia as histórias que o ajudariam a consagrar a “crônica
andarilha” como mais uma ramificação do gênero.
É
apreciada também a “crônica cantada” ou a “crônica da mulher amada”, ramo em que
o maior dos craques foi Vinicius de Moraes. Uma das melhores é aquela que
começa “Se fosses louca por mim, ah eu dava pantana, eu corria na praça, eu te
chamava para ver o afogado” — e a crônica seguia por aí afora, cheia de
sugestões poéticas e convites. Não por acaso, esta “Chorinho para a amiga”
vinha dentro de um livro intitulado “Para uma menina com uma flor”. Vinicius,
oito casamentos, era fogo na roupa.
Ao
contrário da ficção clássica, em que o autor pode empostar as vozes mais
disparatadas para narrar as histórias que inventa, a crônica tem uma janela em
vai-e-vem sobre o mundo real. O cronista abre a sua para observer o mundo, mas
com o movimento permite que lhe vejam a intimidade da sala. É uma das graças do
gênero, expositivo ao extremo, com o “eu” verbalizado em todas as suas
conjugações.
“O
mundo começa nos seios de Jandira”, dizia o poeta Murilo Mendes, mas era a
primeira linha de um verso. Numa crônica, o mundo começa no umbigo de quem a
assina — e aí, eis o truque, cabe ao autor torná-lo não uma obsessão vulgar,
não uma viagem ególatra do tipo “oh, como ele é interessante”.
O
umbigo de fora do cronista, feito o da laranja Bahia para os
hortifrutigranjeiros, é inerente ao gênero. Carlinhos de Oliveira mostrava o
seu, quase sempre bêbado, roçando o balcão do Antonio’s. É preciso, no entanto,
trabalhar para que o redondo na barriga se pareça com aquela metáfora do rio da
aldeia. Um grande escritor, depois de contemplar o riacho atrás de casa, depois
de banhar-se nele, transforma suas águas em sabedoria universal onde todos, por
mais distantes dele, podem ver seus rostos (e desejos, e angústias) refletidos.
A boa
crônica é aquela em que o autor mostra desavergonhadamente, mas em palavras
mais curtas, o próprio umbigo. O leitor percebe maravilhado estar ali também o
retrato do seu. Quando se consegue isso, eis uma crônica, eis o milagre de
tornar o umbigo universal. Exponha- o, afinal é o que você tem — disse uma vez,
sempre resmungando, pedindo ao repórter que lhe deixasse na rede observando os
sabiás, o grande Rubem Braga, inventor da “crônica do vento que balança a
árvore”.
A
“crônica do vovô”, o subgênero criado por Zuenir e Verissimo, é, como se vê,
válida, lúcida e inserida no contexto. Eles passeiam ao redor de suas netas
usando a mesma estupefação com que já observaram o Rio de Janeiro — a “crônica
de exaltação da cidade” é outro subgenera — ou refizeram suas memórias de
infância uma ramificação em que todos
também acabam mexendo. Do outro lado da página do jornal, o leitor reconhece,
no texto do vovô babando as netas, o movimento universal do tempo que passa,
das vidas que se renovam e da esperança do novo. A crônica faz a aposta lírica,
nas entrelinhas, de que vem aí um mundo melhor.
Quando
esses dois grandes cronistas do GLOBO começaram a exaltar suas netas como a
encarnação moderna da inteligência não livresca e de um estilo de vida que
breve todos imitariam, eu os julguei radicais demais no uso da liberdade
subjetiva. No silêncio da minha admiração pelos dois, firmei posição. Por mais
necessário que seja ao cronista descobrir emoções e cultivá-las, em texto
brando, diante do público, eu não iria tão longe. Aproximava-se o nascimento do
meu neto, mas eu resistiria. Eduardo já vai agora com dois meses. Por mais
impressionante que seja seu desenvolvimento físico (outro dia lhe deram cinco
meses), eu disse aos pais, ansiosos para eu seguir o estilo de Zu e Verissimo,
que evitaria escrever sobre o assunto, por mais obviamente fundamental que ele
nos parecesse ao destino da Humanidade.
Nesses
poucos dias de sua breve, mas já vitoriosa existência, Eduardo tem se mostrado determinadamente
macho em supercar as idiossincrasias da cólica noturna. Vai bem. Noite dessas,
eu o embalava com a “Galinha pintadinha” e trocamos sinais de cumplicidade.
Pisquei o olho direito, como
se dissesse,
“aguenta firme, garotão”, e ele piscou de volta, sutil, mas instigante,
virilmente focado naquele primeiro bom combate. Dizem que se parece comigo.
Ainda ontem, enquanto eu falava com Zuenir ao telefone, Eduardo fazia uns
movimentos com a boca, como se estivesse querendo mandar um beijo para a Alice.
E mais não digo, e mais não falo sobre suas bochechas felizes, porque aí já
seria a “crônica do vovô”, o que definitivamente está for a dos meus
propósitos.
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