Quando o caixa
eletrônico questiona a sua existência
Meu prezado
banqueiro, deixe eu me apresentar sem mais delongas e rapapés.
Eu sou
um brasileiro como outro qualquer, estatura mediana, sete graus de miopia,
ombros arqueados pelo peso do mundo, um zé joaquim que não vem ao caso
esmiuçar. Nada de importância, nada que se me destaque o semblante, o olhar
meio para baixo, as contas e as obrigações. Apenas mais um. Zero de
significância social, rosca de pompa e neris de circunstância.
O que
eu quero lhe dizer, meu banqueiro, é que acabei de chegar do seu banco, cheio
de roletas antimetal, e o que me assucedeu calou fundo. Deve acontecer
diariamente com milhares de outras pessoas, deve ser o jeito executivo de vocês
irem direto ao assunto. Mas me foi a primeira vez e, se a moça da propaganda
não esquece o sutiã, eu tenho o direito de lembrar a primeira vez em que
alguém, sem sutileza, executivamente cru, falou: ‘Bicho, você está com o prazo
de existência vencido’.
Sou,
como estava dizendo, um senhor passado nos anos, portador da chamada idade provecta.
Por tais contingências já somo uma caminhada que sei lá por que não desmaia, uma
trajetória já quase tão mais comprida quanto a Restinga de Marambaia.
Por
essa insistência em ficar de pé por tantos anos, embora a toda hora me estalem
os ossos dos joelhos, eu acabei tendo direito a uma aposentadoria. À cata dela,
e é isso que me faz lhe endereçar estas maltraçadas, todo mês vou ao seu banco
retirar os caraminguás. Neste ponto nós dois nos encontramos, o zé joaquim qualquer
e o grande doutor banqueiro, em mais um acerto daquela teoria de que todas as
pessoas estão próximas por seis graus, seis passos, seis pessoas, sei lá.
Desculpe
se tergiverso e tento falar bonito.
Pois,
então, é isso. Eu pego os caraminguás da aposentadoria no caixa eletrônico de
seu banco. Raspo o quase nada de uma vez. Ponho num bolso bem escondido do paletó
e, antes de me pôr à rua, investigo — eu leio jornal, vejo o “RJ TV” — se não
está por perto algum esperto do golpe da saidinha. Ando em zigue-zague pela
calçada, olhando para os lados e para trás. Percorro um quarteirão que tem
cinco farmácias e faço a pesquisa de preço, de quanto vai o Motillium, o
Pantoprazol etc. Em meia hora gasto a aposentadoria em comprimidos, graças aos
quais estou de pé, respirando, enfiando o cartão no seu caixa e tentando retirar
o que me cabe.
Digo
“tentando” porque semana passada, no ritual do início do mês, enfiei o cartão
na máquina, batuquei na lataria enquanto ela acordava, digitei a senha — e foi
aí que a sua tela me alertou em letras garrafais: “Cartão bloqueado. Dirija-se
ao caixa e dê prova de vida.”
Eu
pensei que fosse alguma pegadinha do “Fantástico”. Uma câmera dentro do caixa
eletrônico devia estar filmando a reação do aposentado diante daquele teste de
existência proposto por uma lata de luz e teclado. Julguei estar ouvindo as
gargalhadas sinistras de filmes com mortos-vivos. Pensei em esboçar um sorriso,
sair bem no programa e desmentir com inteligência superior a suspeita da
máquina — mas foi aí que eu pisquei, doutor banqueiro.
E se a
máquina estiver certa?
E se
ela tiver acesso a bancos clínicos, institutos médicos legais, fontes
celestiais e, cérebro eletrônico, for mais bem informada do que eu?
E se o
cartão de vida já estiver definitivamente bloqueado e você, como na piada do adultério,
foi o último a saber?
E se o
aviso fosse mais um desses serviços que os bancos oferecem sem lhes ser pedido e
pelos quais cobram centavos, que se somam aos centavos de outros milhões de
aposentados, e no balanço de fim de ano dão lucros de bilhões de reais?
Bancos
são funcionais, raciocinam matemáticas e não questões filosóficas como a que a
máquina me propunha. De índole prática, ela me deixava sem o dinheiro, o que
talvez já confirmasse a notícia. No novo plano espiritual a que estava sendo
anunciado, eu não precisaria mais dessas coisas materiais.
Fiquei
diante da máquina pensando que provas de vida eu daria — chutar-lhe-ia as
canelas, colaria um chiclete na tecla “enter” — mas, cabisbaixo, como se me
declarasse culpado, não encontrei boas
saídas para passar no teste e ter o cartão existencial desbloqueado.
Que
homem se apresentaria, hoje, diante de uma banca formada por caixas de banco,
psicanalistas, ou qualquer tribunal de felicidade, para ser submetido com
profundidade a um teste de vida? Qualquer tribunal que perguntasse em primeiro
lugar qual o tempo que cada um tem disponível para se divertir, zerar o QI,
buscar o prazer do jeito que lhe aprouver, seja escrevendo estas palavras
difíceis, jogando gamão, fazendo sexo ou simplesmente indo ali molhar a ponta
do dedo no mar de Ipanema só para dizer à mulher que o acompanha, “eu tô maluco
ou esse aquecimento do planeta está deixando a água cada vez mais fria” — e os
dois, de bobeira, cairiam na gargalhada.
Eu não sei dos poderes de um computador dentro de um caixa eletrônico, meu caro banqueiro, mas fiquei com a impressão de ele ter me registrado em frente ao terminal, digitando a senha ao mesmo tempo em que procurava mensagens na internet do celular e fazia sinal para o táxi, estacionado na calçada, continuar me esperando. O caixa eletrônico deve ter percebido o tumulto de minhas intenções, a correria sem sentido, os trabalhos sempre atrasados, os amores sempre maltratados, e por alguns centavos disparou o alerta zombeteiro duvidando que, com uma rotina dessas, eu ainda me considerasse vivo. (Na próxima semana, no guichê da agência, a bancária de óculos e sorriso irônico faz as questões do teste de vida.)
Eu não sei dos poderes de um computador dentro de um caixa eletrônico, meu caro banqueiro, mas fiquei com a impressão de ele ter me registrado em frente ao terminal, digitando a senha ao mesmo tempo em que procurava mensagens na internet do celular e fazia sinal para o táxi, estacionado na calçada, continuar me esperando. O caixa eletrônico deve ter percebido o tumulto de minhas intenções, a correria sem sentido, os trabalhos sempre atrasados, os amores sempre maltratados, e por alguns centavos disparou o alerta zombeteiro duvidando que, com uma rotina dessas, eu ainda me considerasse vivo. (Na próxima semana, no guichê da agência, a bancária de óculos e sorriso irônico faz as questões do teste de vida.)
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