E como ia dizendo, meu
prezado banqueiro, lá estava eu no guichê do seu populoso banco. Um dia depois
de exigido pelo caixa eletrônico, a fim de realizar o que me for a solicitado
como urgente, eu seguia as ordens de apresentar uma prova de vida para que de
seus cofres continuassem a pingar os caraminguás mensais da minha
aposentadoria.
Era
curta demais a mensagem dada pelo tal caixa, esse oráculo cibernético a quem as
pessoas consultam diariamente e só a ele, em tempos de exposição no Facebook,
revelam o único segredo ainda guardado por todos: a senha da grana (quase que eu
digo “a sanha da grana”, mas poderia soar grosseiro, o que eu não pretendo,
caro banqueiro, em nenhum momento desta missiva).
O
caixa eletrônico tinha sido curto e grosso, como manda o bom texto. Não tinha
dado (quase que eu escrevo “havia dado”, meu bom banqueiro, mas achei que
poderia ser entendido como baixaria contra sua nobre instituição, o que está
longe das intenções de qualquer vírgula destas maltraçadas) — o caixa
eletrônico não me tinha dado dica do que seria a tal prova de vida. Sendo
assim, um dia depois, com a cara, a coragem e um policial do Raymond Chandler para
enfrentar a fila, lá estava eu diante da sua atarefada bancária.
“O
caixa pediu que eu viesse aqui apresentar prova de vida”, informei, no que
imaginava ser o texto necessário para a situação, o “abre-te, sésamo” a partir
do qual abrir-se-meia novamente a porta da fortuna de minha aposentadoria.
Silêncio.
Senti,
pelo semblante decepcionado da moça, um olhar de quem decodificara apenas
reticências na frase. Faltava algo para completar a performance.
Era
uma loura de óculos redondos, o que só aumentava o acúmulo de reticências com que ela lera minha frase.
O cenho torcido (quase que eu digo “o sonho perdido”, mas não quero ser
desabonador ao esforço de seus funcionários, caro banqueiro), as mãos paradas
num teclado, o corpo congelado. Movimentação zero.
Ela
ouviu minha frase em impávido e colossal mutismo, reforçando o silêncio sem um
esgar, por mais de 30 segundos. Eu ouvia por todos os lados as máquinas de
filmar rodando o novo capítulo deste constrangimento moderno.
Silêncio.
O meu
texto tinha acabado, não havia um ponto teatral me soprando colas — e eu
suportei o enquadramento dos óculos dela. Desconhecia por completo o
desenvolvimento da cena. Estava em território inimigo, e digo isso sem querer
lhe parecer agressivo, estimado banqueiro. A fila ameaçava crescer atrás de mim
e foi isso, vivam os deuses das filas dos idosos!, que me salvou.
“Identidade”,
ela piscou, abrindo o jogo, revelando para meu alívio a ausência que sentira na
minha performance. Eu, paranóico, tinha entendido o silêncio com que ela me recebera
como uma ausência física de mim mesmo. Eu não existia mais, o banco estava
certo. Achei, pelo silêncio prolongado, que ela simplesmente não me via. Eu já
não estava mais entre nós, e os deuses financeiros mais uma vez mostravam o seu
poder. Haviam detectado em minha sorumbática figura diante do caixa eletrônico
a de mais um aposentado fantasma. Alguém a quem precisava ser dada a notícia de
que, lamentavelmente, não havia mais necessidade de se liberar o cartão de
acesso aos caraminguás, pois no plano celestial é como na música do Raul Seixas
— é tudo free.
Eu
respirei constrangidamente aliviado quando a moça pediu a carteira de
identidade, pois era uma manifestação, a primeira que o seu banco dava, de que
haveria uma possibilidade de eu estar vivo.
Os
dias têm sido muito difíceis, corre-se atrás de irrelevâncias, são enormes as
dúvidas de que estamos realmente no controle de nossa existência e até mesmo do
respiro de nossos pulmões — por isso, meu banqueiro, foi com júbilo que apresentei a carteira de
identidade à sua funcionária.
Sim,
eu estava vivo. E já que ela não dava crédito ao ar que eu visivelmente exalava
pelos pulmões, o que poderia bastar num exame mais rápido de vida, já que era
preciso mostrar também burocraticamente que eu sobrevivera a toda essa
carnificina da azáfama moderna, esse azougue de atribuições inúteis — enfim, já
que era preciso mais provas de vida ali estava, sim, eu a tinha, a minha carteira
de identidade.
A sua
bancária examinou a velha peça assinada pelo Instituto Félix Pacheco, escondeu
como pôde, sem riso, a perplexidade ao confrontar a foto cabeluda com o cocuruto
glabro de agora. Parecia se dar por satisfeita quando se colocou novamente em guarda.
Ressabiada, levava a carteira para mais junto aos óculos, como se estivesse com
dificuldade de ler o que estava nela.
“A
identidade está se apagando”, disse, “vou aceitar dessa vez, mas o senhor
precisa tirar uma nova”.
Enfim,
meu banqueiro, eu sei que seus lucros caíram com a inadimplência e a crise
mundial está feia. Não quero ficar remoendo os problemas banais de um taciturno
aposentado, ombros arqueados, sempre manquitolando dor nas juntas. Eu poderia
lhe cantar o samba do “chora, doutor, chora, eu sei que o medo de ficar pobre lhe apavora”, mas essa carta é
de exaltação da vida. Me move a pena benigna, e só. A moça ameaçou colocar a
minha identidade esmaecida no limbo do “caiu em exigência”, mas finalmente me
aceitou como sou. Resignadamente vivo.
Era
isso, senhor banqueiro. Queria apenas compartilhar a saga de constrangimentos por
que passa um homem comum, um zé joaquim qualquer que não vem ao caso. Lhe
escrevo mais para confirmar, com a carta registrada num posto do correio de
Ipanema, que, sim, estou dentro. Passei raspando no teste de vida de sua
instituição. A moça do caixa me olhou como se eu fosse um fantasma, o caixa
eletrônico debochou da minha cara. A identidade está se apagando, a paciência
vai esmaecendo, o saco vai enchendo, mas eu tenho uma nega que não se chama
Teresa, eu tenho um neto que se chama Eduardo, e o pulso — sente esse “jab” de
direita na ponta do seu queixo gordo, senhor banqueiro —, o pulso ainda pulsa.
Brilhante.
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