CASAL NA ESQUINA/2 (28/01/2013)

O amor acaba por qualquer motivo, dizia Paulo Mendes Campos, e enumerava num dos clássicos da literatura brasileira que ele pode virar pó, frivolidade, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio, no abuso do verão e também numa esquina — exatamente como aquela em que está desde a semana passada exposto à curiosidade pública o Catedrático das Coisas do Coração discutindo com a mulher.
O casal está exatamente na esquina de João Lira com Delfim Moreira, na calçada do Hotel Marina do Leblon, e ele gesticula, ela faz um esgar de coitada. O amor está acabando no momento em que eles talvez estivessem saindo para o almoço de domingo, antes mesmo de pedir o couvert . Ou antes mesmo que se desfizesse o colorido iceberg da sorveteria onde talvez — o amor acaba espremido nessa multidão de “talvez” — o casal estivesse indo refrescar o tédio. Não deu tempo.
Ele escreve nos jornais e revistas brasileiros sobre um único assunto, esse mesmo que ele agora está pontuando tão mal, com gestos exagerados, ênfases faciais de quem a qualquer momento vai deixar de lado o vernáculo clássico e partir para uma ignorância jamais vista por seus leitores. E, no entanto, é justo um deles que está passando ao lado, duplamente atingido pelo choque do sol do verão carioca e o constrangimento de participar, como aquele popular que cruza sem querer a frente da câmera, da cena em que o Professor do Amor, em plena vida real, está dizendo “chega”, e abandonando a cátedra.
Caetano Veloso acabou de lançar uma versão do bolero “Sabe Deus” e num dos versos ele diz “O homem não sabe nunca nada”. Mas definitivamente não há música tocando nesta cena de domingo à tarde na esquina do Leblon. Hoje não tem bolero nem samba canção. O amor está acabando na ambulância que não chega, no boletim de ocorrência lavrado com dezenas de testemunhas e na sensação mútua de que talvez fosse melhor não ter acontecido.
É o barraco de quem já vinha guardando baldes de decepções, sufocando dúzias de “não te entendo”, até que a frustração amorosa, essa indesejada das gentes, não aguenta mais. Ela explode aos gritos onde quer que se esteja, e aqui, para tornar mais cruel a sua aparição, o cenário da briga é o do paraíso carioca, o mar batendo suave, uma menina linda que passa deslizando no remo em pé, o Dois Irmãos ao fundo sinalizando sutil a necessidade de uma poesia a qualquer hora.
A poesia mais conhecida e bonita do mundo é a de que um é bom, três dá muito trabalho, e que a dupla de criação, o homem e a mulher juntos, é o único projeto possível para suportar a vulgaridade e não desaparecer entre as folhas do carnê do IPTU. Mas eis que no meio da paisagem deslumbrante o Especialista do Verbo Amoroso e sua mulher fracassam na pergunta de um milhão. Como manter um casal junto? O intruso, que não tem como se escafeder da situação e se aproxima do casal, ainda de dedos em riste, nervos crispados, leu dezenas de artigos do Catedrático da Paixão, anotou neles citações pertinentes de Deleuze e outros filósofos preocupados com os assuntos da existência. “Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um pouco de razão na loucura” — mandava Nietzsche num desses manifestos brilhantes e equilibrados. Tudo que o leitor ouve agora, vindo da boca do Grande Pensador na esquina, é um amuado “Assim não dá” e “Foi você quem pediu”.
Os casais maiores de 50 anos se formam diante de drinques vermelhos, de risadas com a cabeça jogada para trás e, talvez, essa palavrinha novamente inevitável quando se flutua entre a troca de sentimentos, talvez se cite um Drummond dizendo que o amor chega tarde. Os mais entusiasmados costumam colocar parques de ouro como cenário. Na esquina do Leblon o amor está acabando com um texto de novela do SBT, os diplomas da Sorbonne rasgados em praça pública na troca raivosa por parágrafos de ódio e decepção, um vernáculo que o intruso passando pela cena fez questão de não anotar mais, tamanha a banalidade da vociferação.
O amor nos tempos de Paulo Mendes Campos acabava depois de três goles de gim morno na beira da piscina, no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados. Naquela calçada do Hotel Marina do Leblon, domingo à tarde, sol a pino, a poesia fugiu para dar um mergulho na praia em frente. O casal ficou sozinho com seu fracasso e os próprios verbos. A mulher fez sinal para o táxi. Abaixou a janela que a confortava no ar refrigerado e, mirando o PHD do Amor na alçada, gritou-lhe sem exclamação o ponto final decepcionado naquela crônica moderna de quando o amor acaba: “Estúpido” — e o táxi tocou a vida em frente.

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