O amor acaba por qualquer motivo, dizia Paulo
Mendes Campos, e enumerava num dos clássicos da literatura brasileira que ele
pode virar pó, frivolidade, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio,
no abuso do verão e também numa esquina — exatamente como aquela em que está
desde a semana passada exposto à curiosidade pública o Catedrático das Coisas
do Coração discutindo com a mulher.
O casal está
exatamente na esquina de João Lira com Delfim Moreira, na calçada do Hotel Marina
do Leblon, e ele gesticula, ela faz um esgar de coitada. O amor está acabando no
momento em que eles talvez estivessem saindo para o almoço de domingo, antes mesmo
de pedir o couvert . Ou antes mesmo que se desfizesse o colorido iceberg da
sorveteria onde talvez — o amor acaba espremido nessa multidão de “talvez” — o
casal estivesse indo refrescar o tédio. Não deu tempo.
Ele escreve nos
jornais e revistas brasileiros sobre um único assunto, esse mesmo que ele agora
está pontuando tão mal, com gestos exagerados, ênfases faciais de quem a
qualquer momento vai deixar de lado o vernáculo clássico e partir para uma
ignorância jamais vista por seus leitores. E, no entanto, é justo um deles que
está passando ao lado, duplamente atingido pelo choque do sol do verão carioca
e o constrangimento de participar, como aquele popular que cruza sem querer a frente
da câmera, da cena em que o Professor do Amor, em plena vida real, está dizendo
“chega”, e abandonando a cátedra.
Caetano Veloso acabou
de lançar uma versão do bolero “Sabe Deus” e num dos versos ele diz “O homem não
sabe nunca nada”. Mas definitivamente não há música tocando nesta cena de
domingo à tarde na esquina do Leblon. Hoje não tem bolero nem samba canção. O
amor está acabando na ambulância que não chega, no boletim de ocorrência
lavrado com dezenas de testemunhas e na sensação mútua de que talvez fosse melhor
não ter acontecido.
É o barraco de quem já
vinha guardando baldes de decepções, sufocando dúzias de “não te entendo”, até
que a frustração amorosa, essa indesejada das gentes, não aguenta mais. Ela
explode aos gritos onde quer que se esteja, e aqui, para tornar mais cruel a
sua aparição, o cenário da briga é o do paraíso carioca, o mar batendo suave,
uma menina linda que passa deslizando no remo em pé, o Dois Irmãos ao fundo
sinalizando sutil a necessidade de uma poesia a qualquer hora.
A poesia mais conhecida
e bonita do mundo é a de que um é bom, três dá muito trabalho, e que a dupla de
criação, o homem e a mulher juntos, é o único projeto possível para suportar a
vulgaridade e não desaparecer entre as folhas do carnê do IPTU. Mas eis que no
meio da paisagem deslumbrante o Especialista do Verbo Amoroso e sua mulher
fracassam na pergunta de um milhão. Como manter um casal junto? O intruso, que
não tem como se escafeder da situação e se aproxima do casal, ainda de dedos em
riste, nervos crispados, leu dezenas de artigos do Catedrático da Paixão,
anotou neles citações pertinentes de Deleuze e outros filósofos preocupados com
os assuntos da existência. “Há sempre alguma loucura no amor. Mas há sempre um
pouco de razão na loucura” — mandava Nietzsche num desses manifestos brilhantes
e equilibrados. Tudo que o leitor ouve agora, vindo da boca do Grande Pensador
na esquina, é um amuado “Assim não dá” e “Foi você quem pediu”.
Os casais maiores de
50 anos se formam diante de drinques vermelhos, de risadas com a cabeça jogada
para trás e, talvez, essa palavrinha novamente inevitável quando se flutua entre
a troca de sentimentos, talvez se cite um Drummond dizendo que o amor chega tarde.
Os mais entusiasmados costumam colocar parques de ouro como cenário. Na esquina
do Leblon o amor está acabando com um texto de novela do SBT, os diplomas da Sorbonne
rasgados em praça pública na troca raivosa por parágrafos de ódio e decepção, um
vernáculo que o intruso passando pela cena fez questão de não anotar mais,
tamanha a banalidade da vociferação.
O amor nos tempos de
Paulo Mendes Campos acabava depois de três goles de gim morno na beira da
piscina, no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados. Naquela calçada
do Hotel Marina do Leblon, domingo à tarde, sol a pino, a poesia fugiu para dar
um mergulho na praia em frente. O casal ficou sozinho com seu fracasso e os próprios
verbos. A mulher fez sinal para o táxi. Abaixou a janela que a confortava no ar
refrigerado e, mirando o PHD do Amor na alçada, gritou-lhe sem exclamação o
ponto final decepcionado naquela crônica moderna de quando o amor acaba: “Estúpido”
— e o táxi tocou a vida em frente.
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