Mercado São Pedro

Amigos cruzam a Ponte Rio-Niterói para contar histórias

Não está acontecendo nada, é apenas um sábado de coração vagabundo, e meia dúzia de amigos com o dia idem pega seus carros, cruza a ponte Rio-Niterói, sai à direita e logo está contando histórias, nem todas verdadeiras, quase todas divertidas, numa mesa gabaritada do segundo andar do Mercado São Pedro. Nada a fazer, todas as repartições fechadas, carimbos e computadores desligados. Os amigos bebem, investigam os peixes, falam pelos cotovelos.

Um deles havia estado na véspera com a juíza Denise Frossard numa mesa de aniversário com outra meia dúzia de amigos, e ela narrara a incrível tarde em que exercia sua profissão numa vara do Fórum do Rio de Janeiro. O réu agendado para depor já estava com mais de 150 anos de condenação. Nada teria a perder com mais aquele processo. Foi nesse momento de consciência, de que um ano a mais, uma década que fosse, nada lhe iria mudar o destino de permanecer até o fim atrás das grades — foi aí que se deu o causo narrado por Denise Frossard.

Contou a digníssima juíza, na mesa de conversa do aniversário, que o réu, em meio ao depoimento de mais aquele crime lamentável, abriu sem maiores delongas a braguilha e silenciosamente projetou para fora da calça o pênis. A juíza diz que se manteve impávida. Ouvia-se uma mosca cortando o salão. Foi aí que Denise Frossard virou-se para o escrivão e, com todo o esgar de eficiência e frieza que o prolongado exercício da profissão lhe rendera, ditou: “Que neste momento o réu foi expulso da sala ao abrir a calça e colocar para fora o seu pênis diminuto”.

São meia dúzia de amigos no Mercado São Pedro, profissionais de diversas categorias, todas carregadas em algum momento da necessidade de contar histórias, reais ou inventadas, seja em forma de livros, filmes, músicas, reportagens ou peças de teatro. Um deles, com a taxa de triglicerídeos batendo os 1.200 pontos, não bebe mais cerveja, e para onde vai, como naquela tarde, se faz acompanhar de duas garrafas de vinho e duas taças numa bolsa térmica azul, a mesma que anteriormente embalara um Peru Sadia no Natal. Trouxe também uma estilosa bolsa de gelo. Ele foi até Niterói de táxi e agora conta o que lhe assucedeu na viagem.

O motorista, depois de ouvir no rádio o anúncio de um título de capitalização, disse que só uma vez ganhou alguma coisa em jogo. Numa manhã, acordara bastante aborrecido porque sonhara estar transando com a própria e já falecida avó. Passou pelo ponto do jogo do bicho e o do meio-dia já havia corrido, tendo dado o porco. Um sujeito disse-lhe então que depois do porco vinha a vaca. O motorista lembrou-se acabrunhado que o número da sepultara da avó, o 2797, era vaca, e mais uma vez com repugnância pela associação de uma coisa com a outra, depois de ter transado em sonho com a pobre senhora, apostou na memória da mesma. Deu vaca na cabeça. O motorista, cruzando a Ponte Rio-Niterói, ainda vibrava com a sorte, socando o volante, e dizendo que aplicou todo o rendimento na contratação de uma empresa para lhe bater a laje na casinha humilde em Duque de Caxias. Diz que na fachada colocou, em azulejaria, a inscrição “Obrigado, vovó Maria”.

É sábado à tarde no Mercado São Pedro, um lugar onde se compra o peixe no andar de baixo e cozinha-se em restaurantes no segundo andar. No Rio, desde que nos anos 1960 algum prefeito demolidor botou abaixo o mercado de peixe da Praça XV, não há nada igual. Por isso os amigos cruzam a baía, encomendam ostras, sobem com elas pingando pela escada e sentam-se no bar Temporal, pedindo que dona Ciça agilize o cozimento de outras lulas, mexilhões, ovas e um robalo. O resto do tempo é o batuque de histórias caindo no tampo da mesa.

Um dos amigos comprou nas cercanias do mercado um punhado de pimentas diversas e fazia uma salada com elas, quando se lembrou do famigerado dia em que, neófito na tarefa, depois de manusear e picar dezenas de pimentas cabeçudas, precisou ir ao banheiro para o ordinário ato de um pipi. Na cena seguinte da história, ele está dando entrada no Hospital Miguel Couto com o pênis — novamente ele em cima da mesa — inchado em proporções patológicas, um efeito quase Viagra provocado pela irritação da pimenta na pele sensível.

São causos que não acabam mais, estes que regam uma peixada no Mercado São Pedro, nem todos comuns nos jornais, nem todos dignos da honra de serem entronizados na glória da História impressa — mas aí é que está a graça dessa pimenta vadia num sábado à tarde de pirão.

A eleição do Papa e os royalties do petróleo ficaram do lado de fora. Um dos amigos chama um sujeito parrudo que a tudo assiste de longe. Antes pede que ninguém na mesa puxe pelo passado controverso do cidadão. Ele foi segurança do bicheiro Luisinho Drummond, mas não fala disso. O sujeito senta-se à mesa e, perguntado como andam as coisas, diz na primeira frase: “Eu não sei se vocês sabem, mas eu fui segurança do Luisinho” — e a partir daí é tiro para tudo que é lado.

Houve muitas outras histórias, mas relatá-las daria a impressão de que merecem um lugar nos arquivos impressos da nação. Era só meia dúzia de amigos observando a multiplicação dos peixes no inestimável Mercado São Pedro. Regam as ostras e a vida com o sumo delicioso das desimportâncias. Não está acontecendo nada, é o que se quis dizer. De vez em quando isso é fundamental.

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