Albeniza Garcia, a jornalista que morreu na quinta-feira aos 84 anos, era
do tempo da matéria escrita com três cópias em carbono, uma para o arquivo
particular do repórter, outra para a revisão e outra ainda para o chefe de
reportagem saber o que acontece na equipe. Escrevia-se sobre o morto em decúbito
dorsal, sobre a pobre infeliz ateando fogo às vestes pela vergonha de ser mãe solteira.
O tresloucado gesto vendia jornal. Com a lauda que sobrava dessas ocorrências, alguém
fazia uma bolinha de papel e, pimba!, jogava na cabeça do companheiro da
frente.
Nem melhor, nem pior. No tempo da Albeniza a Redação era assim.
Às sextas-feiras, no esforço do fechamento das edições de sábado,
domingo e segunda, um redator abria a garrafa de uísque vendida pelo contrabandista
de fé, um sujeito cheio de histórias suspeitas que circulava credenciado entre
as mesas. Era o tempo do “ganha-se pouco, mas é divertido”. Faltou matéria?
Taca o calhau. Na gaveta dos mais letrados dormitava um romance regionalista à
espera de editora sagaz.
Albeniza é dessa pré-história, quando o repórter era o rei do jornal.
Gutenberg tomava chope com Herbert Moses no Vermelhinho do Castelo e, na falta
de grandes notícias, colocava- se na manchete um ponto de exclamação para
espantar o leitor. Redação não era lugar para moça, ainda mais na reportagem de
polícia, onde nossa heroína reinou. Ela enfrentou bandidos e delegados, dedicando
a todos a mesma educação e paciência. Trocava tudo por sua adrenalina básica: a
informação exclusiva. De preferência com respingos de sangue, pólvora de 45, e
inédita até mesmo no boletim de ocorrências da DP.
Ao seu lado, subindo o morro, seguia o também repórter Otávio Ribeiro, conhecido
como Pena Branca. O homem mal sabia escrever, como era comum nas Redações. Não
tinha importância. Ele conhecia as leis da malandragem e as contava com estilo,
quase tudo gíria, no jornal do dia seguinte. Pena Branca estava entre os repórteres
que ao final da caçada ao bandido Cara de Cavalo foram chamados pelos detetives
para também dar uns tecos no cadáver do meliante. Foi antes do politicamente correto,
da necessidade de repórter de polícia usar colete à prova de bala. A todos,
homens ou mulheres, Pena Branca chamava carinhosamente de “Piroca”.
Dizer que Albeniza cruzou como uma fera esse bas-fond machista, pode
parecer o anúncio de supermulher, das coxudas que as academias formatam para
cair estraçalhando esses pobres coitados que somos nós outros, todas dispostas ao
enfrentamento na cama, na chuva ou na Redação. Albeniza era baixinha, magrinha,
mas tinha caráter, esse cada vez mais rarefeito músculo adutor da dignidade
humana. A todos, da ordem ou da desordem, ela impressionava.
Vivia da ética. Jamais faria como um concorrente, que, para alavancar as
vendas de seu jornal, inventou o “Mão Branca”, um famigerado justiceiro da
Baixada. Albeniza não traía os fatos, colegas ou fontes. Permaneceu sempre ao lado
dos bons princípios da profissão e da notícia correta. Um dia tocou o telefone,
era o bandido Maurinho Branco. Estava libertando seu sequestrado daquela
semana, o publicitário Roberto Medina, e queria que a jornalista fosse ao evento.
Só acreditava nela.
Tudo isso foi sei-lá-quando, mais ou menos na época daquele samba que
reproduzia a linguagem de um jornal popular e falava da mulher, tresloucada e
seminua, projetando-se do oitavo andar porque o noivo não dava maconha para ela
fumar. Albeniza viu esse presunto. Muitos outros. Espremia-se o jornal e saía
sangue. Entrevistou Mariel Mariscot, Doca Street. Esteve compungida no enterro
de Cláudia Lessin. Procurou o menino Carlinhos por Santa Teresa.
Chamavam-na “Agatha Christie dos pobres”. Albeniza ria. Estava sempre
rindo, a não ser quando o delegado se recusava a atendê-la ou alguém sumia com
o seboso, o caderno-mágico com os telefones das fontes. Aí Albeniza perdia os
pundonores. Aproveitava que o politicamente correto não havia chegado também
neste parágrafo e mandava todo mundo à merda, um lugar para lá da rádio-escuta,
o cantinho de onde os estagiários entravam na faixa de sintonia da polícia para
saber se o bicho estava pegando.
No Rio de Janeiro o bicho está sempre pegando, e lá ia Albeniza para a
Invernada de Olaria atrás da ossada da Dana de Teffé, para a Mangueira atrás do
Mineirinho. Era um tipo de repórter que não existe mais, formada jornalista no
pegáprácapá das ruas e no mau cheiro de verão nas delegacias do subúrbio. Fuçava
sem a ajuda do Google. Nada a ver com o “Newsroom”, com a estagiária do
calcanhar sujo da PUC ou os jabás mandados pelas assessorias.
Com zero de glamour e muito de dedicação, chegou a vez de Albeniza
Garcia colocar a capa de plástico sobre a Remington. Fechar o piano onde tocou
suas histórias, a valsa triste da Cidade Maravilhosa. Hora de entregar a
derradeira lauda e, por motivo de força maior, não aceitar o pedido do chefe
para no dia seguinte suitar a reportagem, acompanhar o caso nas próximas edições.
Desce a última página das velhas Redações.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá, Joaquim!
ResponderExcluirMeu nome é Cely Guerra. Sou irmã de Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra. Ele estudou com vc no Colégio Brigadeiro Schorcht. Só para lembrá-lo: era ruivo, usava óculos e morava em Marechal Hermes. Vc esteve em nossa casa.
Meu irmão faleceu em 2009. Deixou muito material em crônicas e poesias. Nunca publicou.
Nossa mãe fez questão em realizar o sonho dele: um livro com as crônicas.
Gostaria muito de te enviar este livro (sem a menor intenção de pedido de favores).
Estamos presenteando somente as pessoas que, em algum momento da vida, tiveram importância para ele.
Estou tentando contato via email e facebook com vc e ainda não consegui. Por isso estou tentando por aqui.
Um abraço,
Enorme saudade da Albeniza...
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