Cafonas são os beijos que não foram dados e as lágrimas derramadas pela crítica
no leito de morte desses cantores outrora chamados bregas e que agora, toda
semana um morto, são declarados como joias raras da melhor música brasileira.
Descansem em paz Nelson Ned, Reginaldo Rossi, Wando, Dom, Ravel, Evaldo
Braga, Waldick Soriano, Lindomar Castilho e tantos outros no mesmo panteão dos
que já se foram, grandes artistas marcados pela dor macambúzia de jamais
conhecerem em vida o beijo refrescante do elogio impresso.
Perdoem esta espinhela caída que vira e mexe acomete a alma fúnebre
nacional, uma viúva escrota sempre disposta a declarar simpatia culta hoje pelo
cantor velhinho de mau gosto que morreu ontem.
Vocês eram pobres, tinham a pele oleosa, o cabelo esticado com meia de
nylon e pararam de queimar as pestanas no ginásio. Queriam cantar da vida
apenas aquilo que a bandida fornecia de mais sentimental, um roteiro de dor,
perfídia, perfume de gardênia, mulheres que iam embora e as súplicas ajoelhadas
para que voltassem. Vocês sofriam. Os bacanas não gostam disso.
Os críticos acham que cantor brega com valor é feito bandido bom, só
existe depois de morto — e esperaram Nelson Ned morrer, anão coitado apedrejado
em vida, para, compungidos, segurar-lhe a alça do caixão. Quando tiveram a
certeza de que o corpo começava a esfriar, disseram que ia ali a versão nacional
de um Frank Sinatra bonsai.
Eu nunca namorei uma garota em cadeira de rodas, como fez Fernando
Mendes, eu nunca tirei mulher da zona, como perpetrou Odair José, mas eu estava
lá. Vi. Desde aquele dia de 1958, quando estalaram sob as agulhas das vitrolas
nacionais as primeiras bolhas do compacto de João Gilberto com “Chega de saudade”,
criou-se um novo país de belas sonoridades — ao mesmo tempo surgiu a maldição de
que do outro lado do ringue ficariam os párias do mau gosto. Passamos a viver
num apartheid musical. Quem não cantasse baixinho estava fedido. Quem se
deixasse iluminar pela luz difusa do abajur lilás era um perdedor.
O país do santo barroco baiano, sempre orgulhoso do turbante de frutas
de Carmen Miranda e da cabeleira de príncipe na cabeça do mestre-sala, deu meia
volta no sapato bicolor com que ia à pândega na gafieira. Pisou no freio do
exagero estético. A partir da bossa nova surgia um inesperado mal que se
escondia no coração dos homens. Ele devia ser evitado a todo custo, à base de
enteroviofórmio, acordes dissonantes, amor, sorriso e muita flor. O novo mal
brasileiro não era o golpe de Estado, o vento encanado ou o bicho do pé. Era a
música brega.
Antes havia Luiz Gonzaga, Nelson Gonçalves, Joel e Gaúcho, Isaurinha
Garcia, Custódio Mesquita, todos misturados e saudados no mesmo cordão
encarnado da falta de preconceito. Diferentes, mas grandes artistas ouvidos por
ricos e pobres, analfabetos e espertos. Mario Reis, o dândi do Copacabana
Palace, ia até a Lapa gravar em primeira mão os sambas do malandro Sinhô. Antônio
Maria enchia os cornos de uísque e mandava Nora Ney repetir “Ninguém me ama,
ninguém me quer”. Alguns iam de dó de peito, outros se acompanhavam de
zabumbas. A batuta de Radamés Gnatalli não perguntava nada. Regia a todos no
democrático palco-estúdio da Rádio Nacional.
Não havia bem e mal, brega e chique, na MPB. Tanto fazia a comadre
Sebastiana do Jackson do Pandeiro quanto a Nega Luzia do Wilson Batista ou a
normalista do Nelson Gonçalves. Todas comíveis, lindas, musas cortejadas nos
salões. Foram-se. Como cantava Nelson Ned, “tudo passa, tudo passará”.
Talvez por isso, neste momento em que a música popular pulsa tão broxa,
todo mundo querendo se passar por cool, talvez por isso pinguem essas lágrimas
da crítica pelos artistas-mortos que ela maltratou em vida.
Os tais bregas botavam os bofes para fora, como Núbia Lafayette,
rasgavam os paletós no auge da súplica, como Orlando Dias, saíam declamando
poemas como Silvinho. As fãs de Wando, agradecidas por terem suas vidas
colocadas com tanta emoção em cena, jogavam sobre o palco o testemunho efusivo
da vibração de suas calcinhas. Foi no tempo do crime passional, do coração fora
do peito, do pulso sangrando, da camisola do dia tão transparentemente macia, da
porta batendo para nunca mais e do chifre espetando a alma nacional.
Paulo Sérgio, Anísio Silva, Evaldo Braga, Luis Ayrão, Claudio Fontana,
Altemar Dutra e Amado Batista. Nesses aplicativos modernos, onde as moças de
hoje avaliam os rapazes começando pelas suas dimensões penianas, seria colocada
ao lado do nome desses cantores bregas a hashtag #sentimental. Seria uma avaliação
positiva. O tamanho do documento era outro.
Faltou Roberto Carlos,o mais profícuo.
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